terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre o conceito da história/ A pintura histórica de Fromanger. Por Anderson Magalhães


Walter Benjamin inicia seu texto com uma imagem literária bastante surreal, que exemplifica sua crítica ao conceito vigente de história na primeira metade do século XX, essa imagem diz: “Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, coloca o numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre do xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche”. A crítica diz respeito a idéia de uma história entendida como um processo que contem em si mesmo um acumulo automático de fatos do passado, e que ao ser analisada através de causas e efeitos pode nos elucidar totalmente o presente e apontar o caminho para o futuro, contendo inclusive uma certa carga messiânica. Benjamin diz ser o materialismo histórico o fantoche de que fala. O materialismo histórico é um dos princípios da filosofia da história de Marx. Sendo um pensador da escola de Frankfurt, Benjamim não se afasta totalmente dos postulados marxistas, porém com seu olhar perspicaz acusa falhas na concepção histórica de sua época.

Interpretando a imagem literária construída por Benjamin podemos entender a mesa de xadrez ,que através de uma ilusão provocada por espelhos torna-se totalmente visível, como sendo o passado. É certo que o passado é o objeto primordial da história, mas ao contrario do que se pode pensar o passado nunca é dado simplesmente, ele é uma virtualidade percebida como fragmento, não se pode constituir o passado como uma fato a ser apropriado pelo historiador. O passado é sempre uma construção intelectual, social e cultural feita a partir das necessidades, anseios e problemas do presente. É isso que mostra Benjamin em seu texto ao dizer: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo colo ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” Assim sendo o passado avança sobre o presente de acordo com a necessidade, e essa é uma das principais funções da memória, tornar o passado sempre vivo e presente. A história total ou universal como pretendiam os marxistas vulgares é uma grande falácia, assim acusa Benjamin.

Seguindo em sua crítica Benjamin constrói mais uma bela imagem literária, dessa vez utilizando-se de um quadro de Klee chamado Angelus Novus. “Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve Ter esse aspecto. Seus rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruínas sobre ruínas e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”. E afinal o que é o progresso? O conceito de progresso esteve fortemente vinculado ao entendimento dos processos históricos, e vem desde os Iluministas, que acreditavam que a razão guiaria a humanidade sempre para o eterno progresso, ou seja, para a eterna melhoria dos seres humanos rumo ao futuro. Essa idéia sobreviveu em grande parte no marxismo, que interpretava os processos históricos de forma mecânica, dividido em fases seqüenciais e acumulativas que chegaria ao fim com o Estado comunista e o fim da luta de classes (praticamente o paraíso na terra).

Essa idéia de progresso não esteve somente ligada ao pensamento histórico, mas também ao pensamento cientificísta que se formou na modernidade, que acreditava no desenvolvimento das técnicas e do controle da natureza por essas técnicas. Benjamin crítica essa idéia dogmática de progresso e associa-a a formação dos estados tecnocráticos e fascistas da Europa: “Segundo a social democracia, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um progresso sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou espiral.” A tudo isso se chamava “marcha para o progresso”, e Benjamin em plena Europa na década de 40, percebendo o domínio dos regimes fascistas, que tinham como lema essa mesma idéia de marcha para o progresso, via uma contradição latente, um grande desenvolvimento técnico contraposto a um forte domínio ditatorial da sociedade.

Este progresso de que falava Benjamin traz consigo um conceito de história, que se desenvolve dentro de um tempo homogêneo e vazio, e torna o passado uma justificativa para o presente rumo ao futuro. Contra esse conceito de tempo histórico afirma Benjamin: “ A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.” Mais uma vez surge a noção de uma intrisica ligação entre presente e passado nas idéias históricas de Benjamin, assim sendo, se o presente muda, o olhar sobre o passado também deve mudar, isso faz com que o passado não seja apenas um fato congelado a espera de ser decifrado pelo historiador, mas sim um reflexo parcial e dinâmico do próprio presente.

Fromanger em sua pintura traz um intenso e rico diálogo com o campo da história, apropriando-se tanto de temas vindos da história oficial, que seriam os acontecimentos datados de maior importância na França, como por exemplo as passeatas de maio de 68. E também utiliza temas do que se pode chamar de história do cotidiano, onde ele retrata o aparentemente simplório movimento urbano nas ruas de Paris, mas que no fundo demonstra uma certa cultura contemporânea, com suas formações sociais e seus costumes. A própria idéia do movimento da Narração Figurativa é trazer por traz das figuras uma história sendo contada, e nessa narração pictórica é que surgem as críticas políticas e sociais, que Fromanger expões sem ser panfletário, evitando qualquer dogmatismo de esquerda ou direita, apresentando questionamentos sobre a realidade do ontem e do hoje, incitando o pensamento e a critica do observador.

Na série Homenagem à François Topino-Lebrun, Fromanger faz uma tripla sobreposição histórica utilizando a principio uma tela original de Topino-Lebrun e duas releituras suas, A morte de Caius Gracchus e A vida e a morte do povo, respectivamente abaixo: 


La Mort de Caius Gracchus, 1975-77


La vie et mort du peuple, 1975-77

Topino-Lebrun que foi um pintor do período da Revolução Francesa, em sua tela relembra um fato da história da Roma antiga, a morte do reformador romano Caius Gracchus. Pensando o conceito histórico de Benjamin podemos dizer que a pintura de Lebrun diz respeito não só a história do Império romano, mas também ao próprio período em que ele viveu. Sabe-se que os revolucionários franceses tomaram a Roma antiga como símbolo de sua luta, uma apropriação do passado pelo presente. E é isso que Fromanger mostra ao colocar em sua tela legendas que comparam os personagens da Roma antiga aos da época da Revolução Francesa. E além disso ele ainda traz esses mesmo personagens para a vida urbana cotidiana da Paris dos anos 70, essa comparações históricas são perceptíveis pelas legendas e pelas cores que se repetem nas duas telas. Será que além dos grandes personagens históricos com seus grandes feitos para a humanidade, como imperadores, reis, presidentes, não existem também personagens históricos comuns, pessoas diversas, médicos, professores, motoristas, que caminham cotidianamente pelas ruas das grandes metrópoles? Será que essas pessoas comuns não ajudam a construir a história e a sociedade em que vivem de forma tão importante ou mais do que esses grandes nomes destacados incansavelmente pêlos livros de história escolar? Os grandes movimentos históricos, políticos, culturais e sociais como foram a Revolução Francesa e os movimentos de maio de 68 não serão apenas o ápice de movimentos micro-sociais que surgiram na vida cotidiana dessas pessoas comuns que muitas vezes são simplesmente ignoradas pela história oficial? Parecem-me que são esses tipos de questionamentos que Fromanger levanta em suas pinturas, provocando uma reflexão crítica sobre o que entendemos como história e incitando a reinvenção dessa mesma noção.

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