terça-feira, 30 de março de 2010

A Poética do Silêncio: As relações de poder em "Laços de família" de Clarice Lispector. Por Anderson Magalhães

“Livros que ensinam a dançar – Há escritores que, por apresentarem o impossível como possível e falarem do moral e do genial como se fossem um capricho, um gosto, provocam um sentimento de liberdade exuberante, como se o homem se colocasse na ponta dos pés e tivesse absolutamente que dançar por prazer interior.” (Niezsche – Humano, demasiado humano/ p.139).


 
A coletânea de contos reunidos no livro Laços de Família, publicado pela primeira vez em 1960 pela escritora Clarice Lispector, mas escrito ao longo da década de quarenta e cinqüenta, explora o vasto e complexo universo familiar e as relações de poder, amor e ódio, inerentes aos seus membros. O contexto geral da obra trata de famílias cariocas de classe media, personagens que em momentos de epifania rompem com a frágil película do cotidiano, descobrindo um mundo periclitante e lançando-se em um turbilhão de percepções novas e perturbadoras, que as levam a conflitos existências profundos que dizem respeito tanto a interioridade de suas almas quanto ao mundo ao seu redor. Os ambientes domésticos são o palco da narrativa poética de Clarice, que em tom de devaneio desvenda no silêncio os mistérios e segredos que se escondem por detrás de vidas pacatas de donas de casas e adolescentes, pois é no inconsciente que se instalam os medos, traumas e proibições tornados institucionais pela tradição.

O que proponho nesse breve ensaio e uma análise interpretativa e crítica sobre as temáticas que percebo comuns entre os contos presentes nesse livro, esclarecendo e ao mesmo tempo problematizando um pouco a obra de Clarice Lispector com o fim de enriquecer o discurso das mediações sobre a exposição da autora. Minha interpretação partirá do paradigma que se apresenta logo no titulo do livro e se torna uma pergunta: como se instituem os laços que unem os membros de uma família? Para isso utilizarei em parte as propostas foucaultianas de análise de discurso e relações de poder.

A palavra “laços” remete a algum tipo de união, vinculo ou aliança, por outro lado pode também lembrar armadilha, aprisionamento, traição. Já a palavra “família” significa união sangüínea, pessoas que por vínculos materiais e afetivos vivem no mesmo ambiente, mas também é um dos primordiais núcleos de produção e transmissão de valores culturais, produzidos socialmente e historicamente. Assim sendo podemos dizer que os laços de família dizem respeito a uma dinâmica complexa e muitas vezes paradoxal que institui relações de poder e conflitos que geram fenômenos de afetividade, violência, opressão e apaziguamento em seu interior. Pretendo a partir dessa definição demostrar como a autora explora as relações de amor e opressão dentro do ambiente familiar, utilizando breves passagens de alguns contos e comparando-os para tentar perceber nas entrelinhas do discurso as questões centrais apontadas pela autora. Lembrando sempre que a leitura é uma forma de interpretação muito pessoal que reconstrói o lido, assim afirma o psicanalista Birman:

“A leitura é o outro da escritura, condição de possibilidade de sua materialidade na ordem do sentido, a produção do sentido implica na apropriação do texto pelo leitor; que imprime a sua singularidade na experiência da leitura” (Por uma estilística da existência).



No conto que nomeia o livro a personagem principal é Catarina. A história gira em torno, como na maioria dos contos, de um acontecimento aparentemente banal. Catarina acompanha de táxi sua mãe, dona Severina, até a estação de trem. Essa regressa depois de visitar a filha, o genro Antônio e o neto, filho do casal. O conto se inicia com um momento de tensão entre mãe e filha, que se caracteriza por três focos; o incômodo entre Severia e Antônio na hora da partida, levemente apaziguado na despedida; o incômodo de Severina com a magreza e o nervosismo do neto; e a sensação da mãe e da filha de que se esqueceram de alguma coisa. Com essa deixa sobre o esquecimento lembro aqui o titulo de meu ensaio, “A poética do Silêncio”, e aproveito para uma breve explicação.

Dentro da teoria da análise de discurso o silêncio e parte constitutiva e de grande importância, silêncio esse que pode muito bem ser entendido também como uma forma de esquecimento, afinal de contas dizer qualquer palavra significa também não dizer outra.

“(...)ao falarmos, fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se paráfrases que indicam que o dizer sempre podia ser outro. Ao falarmos ‘sem medo’, por exemplo, podíamos dizer ‘com coragem’, ou ‘livremente’ etc. Isto significa em nosso dizer e nem sempre temos consciência disso. Este ‘esquecimento’ produz em nós a impressão de realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nós faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras, que só pode ser assim” (Análise de Discurso – Eni P. Orlandi).



Assim sendo tudo o que se “esquece” em um discurso, aloja-se em seu oposto complementar, o “silêncio”. É no silêncio que estão muitos signos que ajudam a analisar melhor as entrelinhas do discurso, e me parece que a literatura de Clarice esta envolta por essa idéia do silêncio, pois ela tenta colocar no papel sentimentos e percepções muito tênues que escapam ao aprisionamento das palavras, e por isso só podem se aproximar de metáforas que indicam seu sentido exatamente no silêncio, no não dito.

“Aqui, como nos textos poéticos, o entrechoque entre os significantes – que seriam as imagens – e o significado – as representações ou os conceitos – abrem um hiato de silêncio, espécie de momento contemplativo, indizível, conquistado à superfície resvalante das frases e que, inenarrável, já não pode articular-se em palavras, convidando o leitor a uma atitude receptiva, de absorção no objeto sobre o qual se especula. Nos seus romances, Clarice Lispector procura alcançar esse intervalo de silêncio” ( A resposta de Clarice – Benedito Nunes).



Regressando ao conto, Catarina sente uma enorme vontade de rir ao reparar na despedida falsamente pacífica entre sua mãe e seu marido, que de acordo com ela mal se suportaram durante as duas semanas de visita de Severina. Eis ai o primeiro silêncio! A narradora explica que desde pequena Catarina desenvolverá a habilidade de sorrir pelos olhos. Porque Catarina fora obrigada a desenvolver tal habilidade? Porque tinha de esconder seu riso obrigando-o a sair pelos olhos em um leve estrabismo? Tal passagem pode sugerir algum tipo de repressão familiar que se perpetuou em Cataria desde a infância. Em outra passagem do conto a idéia de algum tipo de repressão familiar que impede a expressão de sentimentos e afetos se mostra mais claramente, isso ocorre em uma brusca freada do táxi, que levava mãe e filha a uma inusitada aproximação.

“Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado”(p.96).



Parece que a pesar das ligações afetivas entre as duas havia alguma coisa se escondendo, algum tipo de impedimento ocultado. Toda família, de acordo com a psicanálise, compartilha de mitos que constituem o conteúdo inconsciente dos indivíduos, desejos e fantasias que acabam por ser reprimidos. Em outro momento interessante do conto, Catarina pensa em perguntar para a mãe se ela fora feliz com seu pai, mas a tal pergunta de importância sentimental acaba não saindo e se transformando em outra, de importância secundária : “Dê lembranças a titia! gritou”. Para Cataria não era certo o amor dos pais? Porque afinal ela não fez a pergunta que a inquietava? Essas são outras questões que se escondem no misterioso universo familiar de Catarina e que Clarice incita em sua escrita. Afetada pela despedida com a mãe catarina regressa a casa e vai ao encontro do filho.

“Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mão em censura: este menino!” (p. 99).



Novamente algo parece se ocultar no silêncio, Cataria ama o filho, mas demostra isso com uma gesto de censura, talvez reproduzindo algo que lhe fora passado na infância pela própria mãe. Mas apenas pronunciando a palavra mamãe que o garoto provoca em Catarina um momento de epifania. Aqui aproveito mais uma vez a deixa para tratar a questão da epifania como algo de grande importância nessa coleção de contos.

Muitos dos personagens presentes nos contos desse livro sofrem um momento de epifania. Epifania entendida como um instante de iluminação, de esclarecimento, de auto-descoberta, como se percebessem alguma coisa que sempre esteve ali, mas por algum motivo antes não era vista. A epifania vem para romper os limites do cotidiano ampliando a autoconsciência dos personagens que por um momento vislumbram questões de cunho existencial que envolvem suas vidas aparentemente pacatas. Por exemplo no conto Amor, a personagem Ana outra dona de casa, vai às comprar e no bonde tem uma epifania ao ver um cego mascando chiclete. Ela deixa cair a sacola de compras com os ovos, perde o ponto de parada, e depois se encontra sentada no jardim botânico onde começa a perceber que sua vida cotidiana, controlada e repetitiva e no fundo uma farsa que esconde a periclitancia do mundo ao seu redor. O cego se torna quase uma metáfora para a cultura humana, a linguagem, a vida em sociedade, enquanto o jardim botânico simboliza a natureza selvagem, pulsante e incontrolável que nós as vezes nos esquecemos, tentando esconde-la por traz dos dogmas da civilização.

Catarina ouvira seu filho chama-la sem pedir nada, apenas dizendo mamãe, esse é o ponto onde se dá a epifania.

“A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia ‘mamãe’ nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe , quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolo a verdade caberia, só em mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrando, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a” (p.99/100).



Catarina nessa passagem parece se deparar com o amor, simbolizado pelo filho, como algo que pode vir a se congelar e se perder, um sentimento sublime que ela própria parece querer chamar de Deus em sua simbologia. Já em relação a mãe, em determinada parte da despedia Catarina pensa consigo mesma:

“Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se ‘mãe e filha’ fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso” (p.97).



O amor parece ser o sentimento fundador da família, mas entendido como uma eterna incompletude ele se torna fugidio, e não podendo ser institucionalizado ele desaparece deixando as estruturas familiares, essas sim solidamente institucionalizadas em nossa sociedade. Tal fenômeno é bem exemplificado no conto Feliz aniversário. A narração conta sobre uma festa de aniversário da matriarca de uma família que completa oitenta e nove anos. Os filhos, netos, genros e noras se reúnem para uma comemoração no apartamento de Zilda, a filha encarregada de cuidar da mãe idosa. O ambiente descrito por Clarice e de uma alegria hipócrita e forçada, que esconde as relações de poder no seio da família, repleta de atritos, desentendimentos e ódios oprimidos. Para exemplificar transcrevo aqui uma passagem do conto:

“A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos . Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados” (p.54).



Por que mesmo não gostando dos irmãos o indivíduo insiste em manter alguns laços? Obrigação moral e religiosa ou interesses particulares? Clarice explora em sua narrativa os sentimentos que se escondem por detrás das máscaras sociais que representam uma falsa harmonia que cobre um jogo de poderes, interesses e conflitos. A dona da casa por exemplo, Zilda, cuida da mãe por que essa função lhe foi empurrada pela família, pelo fato dessa ter mais espaço em sua casa. Tal função é aceita com desconforto, e mesmo não recebendo nenhum tipo de ajuda para a festa ela faz de tudo para sustentar uma aparência de afeto e amizade para com todos. Enquanto todos cumprem seus papeis na família a velha de oitenta e nove anos se mantém muda e paralisada na cadeira, desprezando silenciosamente a própria família.

“Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocava, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a se carne de seu coração(...) Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, sua família” (p.60/61).



Ao contrario do que alguns moralistas religiosos costumam a pregar, o seio da família esta muitas vezes repleto de frustrações, ódios e rancores, o que absolutamente não nega a existência de amor e afeto. Ai se encontra um paradoxo que constitui os ditos laços de família. E não é o ser humano essencialmente paradoxal?

As relações de poder dentro da sociedade e da família, de acordo com Foucault, não diz respeito só a interdições, mas também pode dar origem a estratégias diversas de relacionamento e resistência. Isso me remete a outro tema importante nos contos desse livro, e acredito eu em toda a obra de Clarice, a questão da opressão conta a mulher, que se da tanto na sociedade como dentro da própria família. Opressão alimentada por um machismo historicamente construído. Essa opressão acaba dando origem a uma serie de estratégias desenvolvidas pelas mulheres para sua auto-proteção contra esse mundo hostil, o que resulta em isolamento social e a constituição de uma vida voltada totalmente para o outro (marido, filhos, lar), onde a mulher perde sua individualidade entregando-se a papeis sociais pré-determinados, como dona de casa prendada, mãe atenciosa, e esposa dedicada. Isso obviamente tende a reduzir as possibilidades de existência da mulher como sujeito, tornando sua vida tediosa e sem sentido.

Tanto no conto já citado, Amor, quanto em outros como, Devaneio e embriaguez duma rapariga, e A imitação da rosa, as personagens principais estão entregues a conflitos existências que denunciam suas vidas fúteis (fúteis como seres humanos que somos, pois a epifania envolve, a meu ver, uma percepção de nossa pequenez como seres vivos ante o universo), onde elas não pensam, ou tem medo de pensar, em si mesmas, suas vontades, desejos, sonhos, porque sempre primeiro vem o “outro”. Depois de um dia de desconforto a personagem do conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, acorda atrasada para seus afazeres diários, e mentalmente se puni por tal “falta”. O que demostra como a mulher por volta da primeira metade do século XX, e muitas vezes ainda nos dias de hoje, constituía sua identidade a partir de seus afazeres domésticos, como se isso a definisse como pessoa.

“Acorda com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos( os filhos) que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei respeito! dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste! censurou-se curiosa e satisfeita, ir às comprar, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol” (p.12).



Proponho que agora comparemos essa passagem a outras duas dos dois outros contos que mencionei no inicio do parágrafo anterior, para tentarmos ter uma visão mais ampla de como Clarice interpretava a condição social que as mulheres de sua época (me refiro a quando os contos foram escritos) foram lançadas, comecemos pelo Amor.

“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem felicidade se vivia: abolindo-a, encontrando uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera com Ana antes de Ter o lar estava para sempre longe de seu alcance: uma exaltação perturbadora que vezes se confundia com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera” (p.20).



Como boa “existencialista” Clarice deixa de lado os determinismo ao terminar esse trecho destacando a questão da escolha, pois como afirmava Sartre, “o homem está condenado a sua liberdade” (As moscas). A segurança de um lar é o que protege Ana de um mundo livre e perigoso, tanto no sentido mais filosófico como no social. Em outra parte do conto a narradora conta como Ana tomava cuidado com as horas perigosas da tarde quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, é nesse momento que Clarice toca o silêncio de Ana, seu segredo tão secreto que ela esconde de si mesma. Ana sente-se vazia quando não há mais nenhum afazer doméstico, pois são esses afazeres que a definem como pessoa, sempre fugindo de si ela tem de tomar cuidado com essas horas perigosas onde ela é quase que obrigada a olhar um pouco para si mesma.

No conto A imitação da rosa, a personagem Laura é uma dona de casa sem filhos, o que em determinado momento do conto a narração aponta como uma falta que a incomodava, que mantém tudo em sua vida metodicamente organizado e impessoal, até em sua casa ela parece ser uma visita, o que demostra o alto grau de derpersonalização dessa mulher totalmente entregue ao marido e ao lar. O grande conflito de Laura nesse conto acontece em torno da decisão de presentear, ou não, sua amiga Carlota com algumas rosas ( me parece interessante notar a possível significação da amiga Carlota. Para Laura Carlota era a amiga “moderninha”, elas mantém uma relação de inveja e desprezo. Mas é Carlota que desperta um sentimento de alteridade, que incita alguma duvida sobre si mesma em Laura). A beleza das rosas era algo que incomodava Laura, mas por quê? Metaforicamente a beleza das rosas parece representar a possibilidade da liberdade de Laura frente a todas as suas determinações opressivas. A natureza mais uma vez surge como símbolo de uma vida maior, pulsante e livre, que Laura deseja, mas teme. Aqui volto a questionar a condição da mulher que constitui sua identidade baseada em uma noção de doação para com o outro, e destaco as palavras de Clarice, colocadas na boca da personagem Laura, que busca em si uma justificativa para a entrega das rosas a sua amiga Carlota.

“Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria (a empregada domestica). Ela sabia por quê. Porque devia dá-las. Oh ela sabia por quê. E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se ‘ser’. Sobretudo nunca se devia ser a coisa bonita. A uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração” (p.47).



Nas entrelinhas desse trecho é possível perceber a baixa auto-estima de Laura, que nunca coloca a si mesma no centro de seus próprios desejos e decisões, numa espécie de negação de si ela deve sempre doar o que “é” aos outros. Se lembrarmos o trecho já citado do conto Feliz aniversário, perceberemos que a matriarca de oitenta e nove anos também tinha uma definição de mulher que basicamente significava a “entrega ao próximo” (no caso família), e estava rancorosa exatamente por perceber uma certa ingratidão da família frente a sua entrega, o que a frustrava, pois a família não era exatamente o que ela esperava. Em todas as situações se vê mulheres em conflito consigo mesmas, seus desejos, seus papeis sociais, suas identidades, suas escolhas, suas famílias, e tais paradigmas são por um momento questionados levando a uma crise que poderá modificar suas situações de vida ou reforça-las.

Clarice em sua literatura intimista fala do outro como se fala-se de si própria, como em um espelho. Não é possível perceber até onde a ficção se torna realidade, mas no fundo isso não importa. “Ver a verdade seria diferente de inventar a verdade?”(Clarice Lispecto- O Lustre). Ela nasceu em 1920, muito antes da explosão dos movimentos feministas na década de sessenta, casou- se jovem, em 1943 com um diplomata, teve dois filhos, foi dona de casa, mãe, esposa, e como uma resistente se manteve livre através da literatura, a ponto de em uma entrevista afirmar que quando não estava escrevendo se sentia morta. Seu universo literário é o universo feminino, mas as questões que desabrocham em seus livros são de cunho ontológico e por isso pertencem a todo ser humano em qualquer época e lugar, mas de formas diferentes, o que torna sua obra multi-temporal e multi-espacial. Será isso dizer o indizível?

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