terça-feira, 30 de março de 2010

Resenha crítica de: Walter Benjamim- Sociologia, ed. Ática. Capítulos 1- “Paris, capital do século XIX” e 2- “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” . Por Frederico Costa

Benjamin retrata a Paris do séc. XIX através de uma miríade de personalidades que dela escrevam ou que nela viveram e lá construíram importantes contribuições ao febril mundo industrial que ganhava corpo e que configura como base, muito de nossa vida atual.

Louis-Jacques-Mandé Daguerre é uma dessas personalidades por Benjamin escolhidas para falar da Paris capital do século. Daguerre aparece vinculado aos panoramas, tanto os de pintura, quanto os literários e fotográficos, uma vez que ele foi o primeiro a fixar uma imagem pela ação direta da luz. Diz Benjamin sobre isso à página 33:

“David aconselha seus discípulos a desenharem os panoramas segundo a natureza. À medida que os panoramas reproduzir na natureza representada alterações enganosamente similares, eles prenunciam, para além da fotografia, o cinema mudo e o cinema sonoro.

Contemporânea aos panoramas há uma literatura panoramática. (...) Eles se compõem de vários esboços, cujo revestimento anedótico corresponde às figuras plasticamente situadas no primeiro plano dos panoramas e cujo fundo informativo corresponde aos cenários pintados.”

Assim, Benjamin estabelece um liame estético entre a forma de arte plástica vigente na pintura com a literatura produzida no período e com uma das maiores invenções da época, a precursora da fotografia (daguerreotipia).

Uma personagem interessante é citada na página 34, sem maiores explicações, como parece ser a praxe de Benjamin: “A dianteira de Nadar em relação aos seus colegas de profissão caracteriza-se em seu projeto de fotografar o sistema de canalização de Paris.” (grifo meu). Em pesquisa, descubro que Félix Nadar foi, além disso, o primeiro homem a fazer fotografias aéreas. A bordo de um balão de ar, 1858, ele faz fotos aéreas em um sobrevôo por Paris. Dados muito interessantes a serem acrescentados em uma mediação pela série Bastilhas e Derivas de Fromanger. Fotografou diversas personalidades, incluindo Charles Baudelaire, do qual falaremos mais adiante através de sua figura, o flâneur.


Bastille-Treichville Bastille, 1988

Cita, ainda na pág. 34, Antoine Wiertz (pintor romântico belga), que em 1855 publica um artigo defendo que à fotografia caberia “iluminar filosoficamente a pintura”. E diz: “Wiertz pode ser considerado o primeiro que, se não a previu, ao menos postulou a montagem como uma utilização da fotografia para fins de agitação.” Muito pertinente em especial à série Álbum, Le Rouge.

Album Le Rouge, 1968-70


Contemporâneas a essas manifestações artísticas está o surgimento das galerias e passagens, lugares de compras dos finos artigos produzidos agora às carretas pelo processo industrial, a iluminação a gás das ruas- e interiores das galerias antes disso- e das exposições universais a anunciar novidades científicas e industriais. A flânerie é também de tudo isso contemporânea, e se dá em grande medida nestes espaços.

“O flâneur ainda está no limiar tanto da cidade grande quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas se sente em casa. Ele busca o seu asilo na multidão.(...) Na multidão, a cidade é ora paisagem, ora ninho acolhedor. A casa comercial constrói tanto um quanto outro, fazendo com que a flânerie se torne útil á venda de mercadorias. A casa comercial é a última grande molecagem do flâneur.” Pág. 39

A essa ambigüidade do flâneur ao caminhar pelos boulevares e galerias, entre as vitrines e lojas, flanando pelo consumismo, sem ser de todo a ele rendido, ao hábito burguês de bater pernas em shoppings, deixar-se levar sem um rumo definido... Não estamos diante de seus bisnetos ali na série Boulevard dos Italianos?

Série: Boulevard dos Italianos 1971

“A ambigüidade é a imagem aparente e visível da dialética, a lei da dialética em estado de paralisação. Essa paralisia é utópica e por isso a imagem dialética é uma quimera, a imagem de um sonho.” Para Benjamin, o novo é o objetivo do flâneur. Mas não só isso, pois o novo é também ”a quintessência da falsa consciência, cujo incansável agente é a moda. Essa falsa aparência de novidade se reflete, como um espelho em outro, na falsa aparência do sempre-igual, do eterno retorno do mesmo.(...) A arte, que começa a pôr em dúvida a sua tarefa e deixa de ser `inséparable d`utilité` (...) precisa fazer do novo o seu valor máximo” pág. 40.

Quebrar o vidro, com suas vitrines refletindo a cidade, sendo admiradas por silhuetas vermelhas. Que estão a fazer? Contemplando a moda da última coleção primavera-verão ou querendo quebrar o vidro, esperando com isso instaurar o novo? Sairiam do lugar com qualquer dessas ações ou estariam no fundo ainda tão inertes quanto no quadro aderindo a algumas das novidades incessantes anunciadas no design, nas estamparias ou quem sabe nos muros e palanques? Afinal, nem tão pouco da agenda sessentista foi assimilada pelo mainstream político. Alguém diria que estamos num lugar assim tão diferente?

Mas mesmo os vidros quebrados, em Paris, não constituem propriamente novidade. Nomeado prefeito de Paris por Napoleão III, Georges-Eugène Haussmann, de 1853 a 1870 conduziu a haussmannização da cidade, nome pelo qual ficou conhecida a grande reforma da cidade. Essa reforma foi concebida para abrigar o espetacular crescimento da cidade enquanto “capital do séc. XIX” tanto quanto para inviabilizar os levantes populares. Com as novas e largas avenidas supunha-se tornar impossível o levantamento de barricadas e dariam rápido acesso aos bairros operários, uma vez que estes foram expelidos do centro pelas reformas de Haussmann. Não só em maio de 68 temos a cidade tomada por barricadas como quase 100 anos antes disso, em 1871, temos a comuna de Paris.

Com a revolução industrial, pode-se agora ver o surgimento de metrópoles que eram raríssimas na história. Com as metrópoles, temos a multidão, e com a multidão, o anonimato. O flâneur, como um observador em meio à multidão, assemelha-se ao detetive. São ambos frutos dessa nova organização do espaço. O detetive é ainda tributário da fotografia, que torna possível a retenção do momento, um golpe ao anonimato. Temos na Série Negra um derivante que sai às ruas de máquina em punho, investigando os possíveis (prováveis, segundo as estatísticas que o motivaram) motivos escusos de uma grande parcela dos ali presentes, retidos em suas fotografias. Quando nas telas, vemos sublinhados os papéis no chão, bem como uma displicente e enigmática figura sentada num café marcada em vermelho.


Le Linceul n’a pas de poches, 2002-09


O texto não fala diretamente sobre a prática da mediação, mas no contexto específico da exposição de Gerard Fromanger podemos ver várias e úteis referências contextuais sobre subjacências à obra de Fromanger, do surgimento da fotografia e sua relação com a pintura, da constituição geográfico-política da cidade que tematiza. Da ligação entre a flânerie e as histórias de detetives, ou a personalidades como Nadar, que de uma forma peculiar, tem algo a ver com o trabalho do artista hoje. Particularidades históricas que convergem para sua obra em textos escritos antes mesmo de seu nascimento.





Frederico Costa



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