terça-feira, 30 de março de 2010

Uma leitua de "A Paixão segundo G.H." de Clarice Lispector. Por Larissa Calixto

Nesta resenha farei comparações de trechos do livro com dados biográficos da Clarice, o que atesta hipóteses de ser mais um de seus livros no qual a escritora se personifica.

“Clarice escrevia para celebrar o “eu” e viveu numa reclusa e quase doentia introspecção” (Revista ENTRE LIVROS). A personagem G.H. é levada desde o início do livro por uma introspecção em busca do seu eu através de questionamentos sobre sua conduta ao relembrar o que aconteceu no dia anterior. Primeiramente a personagem se desconhece e afirma que se conhecia pelo o que os outros viam dela, e descreve um determinado medo de descobrir quem realmente é, e perder o mundo que tinha. A personagem fala sobre uma terceira perna que funcionava como um tripé, que a deixava estável, mas a impossibilitava de andar, e que esta perna não era necessária mas sentia falta. Clarice por ser casada com um diplomata tinha uma vida estável, porém tinha suas obrigações como esposa, de comparecer em jantares e festas com o marido. Na entrevista para a TV Cultura Clarice fala do rótulo que as pessoas colocavam nela e afirma não ser isso, podemos identificar o trecho em que ela diz que se conhecia pelo que os outros viam dela, diante ela ter que seguir o marido na diplomacia em até mesmo ter que tomar cuidado com o que escrever para não manchar a imagem do diplomata.

O medo de perder o mundo que tinha pode ser o medo da separação, o medo de como seria ser outro, o outro que ela queria ser. Também o medo de uma nova vida, uma vida instável na qual ela teria que andar para se sustentar, e talvez por conta da dificuldade da época pois o desquite só foi legalizado muitos anos depois (Idéia genial de Diana Landim). A impossibilidade de andar pode ser compreendida também como a dificuldade que ela tinha de escrever durante o casamento devido a tantas obrigações com o marido, como confiramção ao começar a descrever o dia anterior, a personagem G. H. diz que seu relacionamento amoroso havia terminado a pouco e havia ganhado um novo gosto de liberdade.

Quando está no quarto da empregada, G.H. se depara com a mudança que afirma a incomodar fisicamente. Na parede encontra o desenho de uma mão de um homem, uma mulher nua e um cachorro feitos com carvão, no qual a G.H. afirma que a empregada Janair havia lhe retratado, e deduz que a empregada a julgara por toda vida pelos seus pares. Mais á frente G.H. diz que o desenho na parede é a marca quase morta de um G.H. Diante disto lembrei-me que Clarice adquiriu o sobrenome do marido Gurgel Valente, e seu nome antes de vir ao Brasil era Haia Lispector, a marca na parede pode ser Clarice (Haia) seu marido Maury (Gurgel) e seu cachorro Ulisses. ”Uma marca de um G.H. quase morto” (p46) e “Havia anos que eu havia sido julgada pelos meus pares” (p44) indicam a separação na vida de Clarice ou o início desta.

A personagem é identificada apenas pelas iniciais de seu nome G.H. o que abre uma possibilidade de ligação do sobrenome do marido que foi adquirido e seu nome ucraniano, considerando que os escritores são identificados pelo seu sobrenome assim como as normas da ABNT o exigem primeiro, e se Clarice usasse o “C” ao invés de “H” ficaria óbvio que era o nome de casada da escritora.

A personagem fala sobre o medo de sua nova vida, de uma vida sem projetos, sem planos, sem organização, e se questiona quanto ao que era, e o que estava fazendo. No momento em que espreme a barata contra a porta do guarda-roupa talvez esteja fazendo uma metáfora em subjugar outras pessoas de classe mais baixa ou presenciar isso “Uma verdade infame que me fizesse ficar do mesmo nível da barata p.64”. “Cântico de graças pelo assassinato de um ser por outro ser p.86”. “Uma mulher lutando desesperadamente pela sobrevivência p.86”.

G.H. afirma que a vida estava se vingando dela e que a vingança se resumia em começar novamente, assim como uma mulher de idade avançada fazendo seu tricô o deixa de lado, e se põe de quatro chão a engatinhar.

“Adeus beleza do mundo [...] Beleza que eu não quero mais [...] Talvez nunca a tivesse querido mesmo p.87”.

Comer a barata significava uma quebra de padrões, de não ser o que o outro espera que seja, de ter um “novo gosto de liberdade”. A paixão segundo G. H. seria a paixão de ter uma nova vida, o rompimento na cama é um rompimento na vida desta personagem, o de superar o medo de deixar a organização humana, em busca de seus anseios, sem ter planos, sem saber o que acontecerá amanhã, assim como Clarice fez ao deixar o marido voltando para o Brasil com os dois filhos sem aceitar pensão deste.

“Perder-se é um achar-se perigoso” p.106



Ps: O livro inicia e termina com travessões, pode se referir a um continuo de dúvidas e esclarecimentos não só na vida dessa personagem mas, também na vida do ser humano que sempre se encontra com medo do novo, do inesperado que ás vezes se arrisca ou não.

A Poética do Silêncio: As relações de poder em "Laços de família" de Clarice Lispector. Por Anderson Magalhães

“Livros que ensinam a dançar – Há escritores que, por apresentarem o impossível como possível e falarem do moral e do genial como se fossem um capricho, um gosto, provocam um sentimento de liberdade exuberante, como se o homem se colocasse na ponta dos pés e tivesse absolutamente que dançar por prazer interior.” (Niezsche – Humano, demasiado humano/ p.139).


 
A coletânea de contos reunidos no livro Laços de Família, publicado pela primeira vez em 1960 pela escritora Clarice Lispector, mas escrito ao longo da década de quarenta e cinqüenta, explora o vasto e complexo universo familiar e as relações de poder, amor e ódio, inerentes aos seus membros. O contexto geral da obra trata de famílias cariocas de classe media, personagens que em momentos de epifania rompem com a frágil película do cotidiano, descobrindo um mundo periclitante e lançando-se em um turbilhão de percepções novas e perturbadoras, que as levam a conflitos existências profundos que dizem respeito tanto a interioridade de suas almas quanto ao mundo ao seu redor. Os ambientes domésticos são o palco da narrativa poética de Clarice, que em tom de devaneio desvenda no silêncio os mistérios e segredos que se escondem por detrás de vidas pacatas de donas de casas e adolescentes, pois é no inconsciente que se instalam os medos, traumas e proibições tornados institucionais pela tradição.

O que proponho nesse breve ensaio e uma análise interpretativa e crítica sobre as temáticas que percebo comuns entre os contos presentes nesse livro, esclarecendo e ao mesmo tempo problematizando um pouco a obra de Clarice Lispector com o fim de enriquecer o discurso das mediações sobre a exposição da autora. Minha interpretação partirá do paradigma que se apresenta logo no titulo do livro e se torna uma pergunta: como se instituem os laços que unem os membros de uma família? Para isso utilizarei em parte as propostas foucaultianas de análise de discurso e relações de poder.

A palavra “laços” remete a algum tipo de união, vinculo ou aliança, por outro lado pode também lembrar armadilha, aprisionamento, traição. Já a palavra “família” significa união sangüínea, pessoas que por vínculos materiais e afetivos vivem no mesmo ambiente, mas também é um dos primordiais núcleos de produção e transmissão de valores culturais, produzidos socialmente e historicamente. Assim sendo podemos dizer que os laços de família dizem respeito a uma dinâmica complexa e muitas vezes paradoxal que institui relações de poder e conflitos que geram fenômenos de afetividade, violência, opressão e apaziguamento em seu interior. Pretendo a partir dessa definição demostrar como a autora explora as relações de amor e opressão dentro do ambiente familiar, utilizando breves passagens de alguns contos e comparando-os para tentar perceber nas entrelinhas do discurso as questões centrais apontadas pela autora. Lembrando sempre que a leitura é uma forma de interpretação muito pessoal que reconstrói o lido, assim afirma o psicanalista Birman:

“A leitura é o outro da escritura, condição de possibilidade de sua materialidade na ordem do sentido, a produção do sentido implica na apropriação do texto pelo leitor; que imprime a sua singularidade na experiência da leitura” (Por uma estilística da existência).



No conto que nomeia o livro a personagem principal é Catarina. A história gira em torno, como na maioria dos contos, de um acontecimento aparentemente banal. Catarina acompanha de táxi sua mãe, dona Severina, até a estação de trem. Essa regressa depois de visitar a filha, o genro Antônio e o neto, filho do casal. O conto se inicia com um momento de tensão entre mãe e filha, que se caracteriza por três focos; o incômodo entre Severia e Antônio na hora da partida, levemente apaziguado na despedida; o incômodo de Severina com a magreza e o nervosismo do neto; e a sensação da mãe e da filha de que se esqueceram de alguma coisa. Com essa deixa sobre o esquecimento lembro aqui o titulo de meu ensaio, “A poética do Silêncio”, e aproveito para uma breve explicação.

Dentro da teoria da análise de discurso o silêncio e parte constitutiva e de grande importância, silêncio esse que pode muito bem ser entendido também como uma forma de esquecimento, afinal de contas dizer qualquer palavra significa também não dizer outra.

“(...)ao falarmos, fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se paráfrases que indicam que o dizer sempre podia ser outro. Ao falarmos ‘sem medo’, por exemplo, podíamos dizer ‘com coragem’, ou ‘livremente’ etc. Isto significa em nosso dizer e nem sempre temos consciência disso. Este ‘esquecimento’ produz em nós a impressão de realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nós faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras, que só pode ser assim” (Análise de Discurso – Eni P. Orlandi).



Assim sendo tudo o que se “esquece” em um discurso, aloja-se em seu oposto complementar, o “silêncio”. É no silêncio que estão muitos signos que ajudam a analisar melhor as entrelinhas do discurso, e me parece que a literatura de Clarice esta envolta por essa idéia do silêncio, pois ela tenta colocar no papel sentimentos e percepções muito tênues que escapam ao aprisionamento das palavras, e por isso só podem se aproximar de metáforas que indicam seu sentido exatamente no silêncio, no não dito.

“Aqui, como nos textos poéticos, o entrechoque entre os significantes – que seriam as imagens – e o significado – as representações ou os conceitos – abrem um hiato de silêncio, espécie de momento contemplativo, indizível, conquistado à superfície resvalante das frases e que, inenarrável, já não pode articular-se em palavras, convidando o leitor a uma atitude receptiva, de absorção no objeto sobre o qual se especula. Nos seus romances, Clarice Lispector procura alcançar esse intervalo de silêncio” ( A resposta de Clarice – Benedito Nunes).



Regressando ao conto, Catarina sente uma enorme vontade de rir ao reparar na despedida falsamente pacífica entre sua mãe e seu marido, que de acordo com ela mal se suportaram durante as duas semanas de visita de Severina. Eis ai o primeiro silêncio! A narradora explica que desde pequena Catarina desenvolverá a habilidade de sorrir pelos olhos. Porque Catarina fora obrigada a desenvolver tal habilidade? Porque tinha de esconder seu riso obrigando-o a sair pelos olhos em um leve estrabismo? Tal passagem pode sugerir algum tipo de repressão familiar que se perpetuou em Cataria desde a infância. Em outra passagem do conto a idéia de algum tipo de repressão familiar que impede a expressão de sentimentos e afetos se mostra mais claramente, isso ocorre em uma brusca freada do táxi, que levava mãe e filha a uma inusitada aproximação.

“Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado”(p.96).



Parece que a pesar das ligações afetivas entre as duas havia alguma coisa se escondendo, algum tipo de impedimento ocultado. Toda família, de acordo com a psicanálise, compartilha de mitos que constituem o conteúdo inconsciente dos indivíduos, desejos e fantasias que acabam por ser reprimidos. Em outro momento interessante do conto, Catarina pensa em perguntar para a mãe se ela fora feliz com seu pai, mas a tal pergunta de importância sentimental acaba não saindo e se transformando em outra, de importância secundária : “Dê lembranças a titia! gritou”. Para Cataria não era certo o amor dos pais? Porque afinal ela não fez a pergunta que a inquietava? Essas são outras questões que se escondem no misterioso universo familiar de Catarina e que Clarice incita em sua escrita. Afetada pela despedida com a mãe catarina regressa a casa e vai ao encontro do filho.

“Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mão em censura: este menino!” (p. 99).



Novamente algo parece se ocultar no silêncio, Cataria ama o filho, mas demostra isso com uma gesto de censura, talvez reproduzindo algo que lhe fora passado na infância pela própria mãe. Mas apenas pronunciando a palavra mamãe que o garoto provoca em Catarina um momento de epifania. Aqui aproveito mais uma vez a deixa para tratar a questão da epifania como algo de grande importância nessa coleção de contos.

Muitos dos personagens presentes nos contos desse livro sofrem um momento de epifania. Epifania entendida como um instante de iluminação, de esclarecimento, de auto-descoberta, como se percebessem alguma coisa que sempre esteve ali, mas por algum motivo antes não era vista. A epifania vem para romper os limites do cotidiano ampliando a autoconsciência dos personagens que por um momento vislumbram questões de cunho existencial que envolvem suas vidas aparentemente pacatas. Por exemplo no conto Amor, a personagem Ana outra dona de casa, vai às comprar e no bonde tem uma epifania ao ver um cego mascando chiclete. Ela deixa cair a sacola de compras com os ovos, perde o ponto de parada, e depois se encontra sentada no jardim botânico onde começa a perceber que sua vida cotidiana, controlada e repetitiva e no fundo uma farsa que esconde a periclitancia do mundo ao seu redor. O cego se torna quase uma metáfora para a cultura humana, a linguagem, a vida em sociedade, enquanto o jardim botânico simboliza a natureza selvagem, pulsante e incontrolável que nós as vezes nos esquecemos, tentando esconde-la por traz dos dogmas da civilização.

Catarina ouvira seu filho chama-la sem pedir nada, apenas dizendo mamãe, esse é o ponto onde se dá a epifania.

“A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia ‘mamãe’ nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe , quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolo a verdade caberia, só em mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrando, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a” (p.99/100).



Catarina nessa passagem parece se deparar com o amor, simbolizado pelo filho, como algo que pode vir a se congelar e se perder, um sentimento sublime que ela própria parece querer chamar de Deus em sua simbologia. Já em relação a mãe, em determinada parte da despedia Catarina pensa consigo mesma:

“Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se ‘mãe e filha’ fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso” (p.97).



O amor parece ser o sentimento fundador da família, mas entendido como uma eterna incompletude ele se torna fugidio, e não podendo ser institucionalizado ele desaparece deixando as estruturas familiares, essas sim solidamente institucionalizadas em nossa sociedade. Tal fenômeno é bem exemplificado no conto Feliz aniversário. A narração conta sobre uma festa de aniversário da matriarca de uma família que completa oitenta e nove anos. Os filhos, netos, genros e noras se reúnem para uma comemoração no apartamento de Zilda, a filha encarregada de cuidar da mãe idosa. O ambiente descrito por Clarice e de uma alegria hipócrita e forçada, que esconde as relações de poder no seio da família, repleta de atritos, desentendimentos e ódios oprimidos. Para exemplificar transcrevo aqui uma passagem do conto:

“A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos . Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados” (p.54).



Por que mesmo não gostando dos irmãos o indivíduo insiste em manter alguns laços? Obrigação moral e religiosa ou interesses particulares? Clarice explora em sua narrativa os sentimentos que se escondem por detrás das máscaras sociais que representam uma falsa harmonia que cobre um jogo de poderes, interesses e conflitos. A dona da casa por exemplo, Zilda, cuida da mãe por que essa função lhe foi empurrada pela família, pelo fato dessa ter mais espaço em sua casa. Tal função é aceita com desconforto, e mesmo não recebendo nenhum tipo de ajuda para a festa ela faz de tudo para sustentar uma aparência de afeto e amizade para com todos. Enquanto todos cumprem seus papeis na família a velha de oitenta e nove anos se mantém muda e paralisada na cadeira, desprezando silenciosamente a própria família.

“Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocava, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a se carne de seu coração(...) Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, sua família” (p.60/61).



Ao contrario do que alguns moralistas religiosos costumam a pregar, o seio da família esta muitas vezes repleto de frustrações, ódios e rancores, o que absolutamente não nega a existência de amor e afeto. Ai se encontra um paradoxo que constitui os ditos laços de família. E não é o ser humano essencialmente paradoxal?

As relações de poder dentro da sociedade e da família, de acordo com Foucault, não diz respeito só a interdições, mas também pode dar origem a estratégias diversas de relacionamento e resistência. Isso me remete a outro tema importante nos contos desse livro, e acredito eu em toda a obra de Clarice, a questão da opressão conta a mulher, que se da tanto na sociedade como dentro da própria família. Opressão alimentada por um machismo historicamente construído. Essa opressão acaba dando origem a uma serie de estratégias desenvolvidas pelas mulheres para sua auto-proteção contra esse mundo hostil, o que resulta em isolamento social e a constituição de uma vida voltada totalmente para o outro (marido, filhos, lar), onde a mulher perde sua individualidade entregando-se a papeis sociais pré-determinados, como dona de casa prendada, mãe atenciosa, e esposa dedicada. Isso obviamente tende a reduzir as possibilidades de existência da mulher como sujeito, tornando sua vida tediosa e sem sentido.

Tanto no conto já citado, Amor, quanto em outros como, Devaneio e embriaguez duma rapariga, e A imitação da rosa, as personagens principais estão entregues a conflitos existências que denunciam suas vidas fúteis (fúteis como seres humanos que somos, pois a epifania envolve, a meu ver, uma percepção de nossa pequenez como seres vivos ante o universo), onde elas não pensam, ou tem medo de pensar, em si mesmas, suas vontades, desejos, sonhos, porque sempre primeiro vem o “outro”. Depois de um dia de desconforto a personagem do conto Devaneio e embriaguez duma rapariga, acorda atrasada para seus afazeres diários, e mentalmente se puni por tal “falta”. O que demostra como a mulher por volta da primeira metade do século XX, e muitas vezes ainda nos dias de hoje, constituía sua identidade a partir de seus afazeres domésticos, como se isso a definisse como pessoa.

“Acorda com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos( os filhos) que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei respeito! dia de lavar roupa e cerzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste! censurou-se curiosa e satisfeita, ir às comprar, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol” (p.12).



Proponho que agora comparemos essa passagem a outras duas dos dois outros contos que mencionei no inicio do parágrafo anterior, para tentarmos ter uma visão mais ampla de como Clarice interpretava a condição social que as mulheres de sua época (me refiro a quando os contos foram escritos) foram lançadas, comecemos pelo Amor.

“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem felicidade se vivia: abolindo-a, encontrando uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera com Ana antes de Ter o lar estava para sempre longe de seu alcance: uma exaltação perturbadora que vezes se confundia com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera” (p.20).



Como boa “existencialista” Clarice deixa de lado os determinismo ao terminar esse trecho destacando a questão da escolha, pois como afirmava Sartre, “o homem está condenado a sua liberdade” (As moscas). A segurança de um lar é o que protege Ana de um mundo livre e perigoso, tanto no sentido mais filosófico como no social. Em outra parte do conto a narradora conta como Ana tomava cuidado com as horas perigosas da tarde quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, é nesse momento que Clarice toca o silêncio de Ana, seu segredo tão secreto que ela esconde de si mesma. Ana sente-se vazia quando não há mais nenhum afazer doméstico, pois são esses afazeres que a definem como pessoa, sempre fugindo de si ela tem de tomar cuidado com essas horas perigosas onde ela é quase que obrigada a olhar um pouco para si mesma.

No conto A imitação da rosa, a personagem Laura é uma dona de casa sem filhos, o que em determinado momento do conto a narração aponta como uma falta que a incomodava, que mantém tudo em sua vida metodicamente organizado e impessoal, até em sua casa ela parece ser uma visita, o que demostra o alto grau de derpersonalização dessa mulher totalmente entregue ao marido e ao lar. O grande conflito de Laura nesse conto acontece em torno da decisão de presentear, ou não, sua amiga Carlota com algumas rosas ( me parece interessante notar a possível significação da amiga Carlota. Para Laura Carlota era a amiga “moderninha”, elas mantém uma relação de inveja e desprezo. Mas é Carlota que desperta um sentimento de alteridade, que incita alguma duvida sobre si mesma em Laura). A beleza das rosas era algo que incomodava Laura, mas por quê? Metaforicamente a beleza das rosas parece representar a possibilidade da liberdade de Laura frente a todas as suas determinações opressivas. A natureza mais uma vez surge como símbolo de uma vida maior, pulsante e livre, que Laura deseja, mas teme. Aqui volto a questionar a condição da mulher que constitui sua identidade baseada em uma noção de doação para com o outro, e destaco as palavras de Clarice, colocadas na boca da personagem Laura, que busca em si uma justificativa para a entrega das rosas a sua amiga Carlota.

“Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria (a empregada domestica). Ela sabia por quê. Porque devia dá-las. Oh ela sabia por quê. E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se ‘ser’. Sobretudo nunca se devia ser a coisa bonita. A uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração” (p.47).



Nas entrelinhas desse trecho é possível perceber a baixa auto-estima de Laura, que nunca coloca a si mesma no centro de seus próprios desejos e decisões, numa espécie de negação de si ela deve sempre doar o que “é” aos outros. Se lembrarmos o trecho já citado do conto Feliz aniversário, perceberemos que a matriarca de oitenta e nove anos também tinha uma definição de mulher que basicamente significava a “entrega ao próximo” (no caso família), e estava rancorosa exatamente por perceber uma certa ingratidão da família frente a sua entrega, o que a frustrava, pois a família não era exatamente o que ela esperava. Em todas as situações se vê mulheres em conflito consigo mesmas, seus desejos, seus papeis sociais, suas identidades, suas escolhas, suas famílias, e tais paradigmas são por um momento questionados levando a uma crise que poderá modificar suas situações de vida ou reforça-las.

Clarice em sua literatura intimista fala do outro como se fala-se de si própria, como em um espelho. Não é possível perceber até onde a ficção se torna realidade, mas no fundo isso não importa. “Ver a verdade seria diferente de inventar a verdade?”(Clarice Lispecto- O Lustre). Ela nasceu em 1920, muito antes da explosão dos movimentos feministas na década de sessenta, casou- se jovem, em 1943 com um diplomata, teve dois filhos, foi dona de casa, mãe, esposa, e como uma resistente se manteve livre através da literatura, a ponto de em uma entrevista afirmar que quando não estava escrevendo se sentia morta. Seu universo literário é o universo feminino, mas as questões que desabrocham em seus livros são de cunho ontológico e por isso pertencem a todo ser humano em qualquer época e lugar, mas de formas diferentes, o que torna sua obra multi-temporal e multi-espacial. Será isso dizer o indizível?

Mediação, Educação e Cultura Visual: uma breve reflexão sobre as propostas de Fernando Hernández. Por Anderson Magalhães

Nesse texto pretendo pensar a atividade de mediação dentro da galeria de arte como uma prática educacional complementar da vida escolar dos alunos, não só como uma forma de aproxima-los das obras de arte e do ensino de arte como também uma forma de se desenvolver e analisar questões voltadas ao vasto campo da cultura visual. Isso tendo como base as propostas apresentadas pelo autor Fernando Hernández nos capítulos cinco e seis de seu livro Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de Trabalho.

O capítulo cinco se intitula A pesquisa sobre a compreensão: a interpretação como chave da educação escolar, e partira de concepções construtivistas sobre conhecimento e educação, abordando questões sobre desenvolvimento humano, apreciação estética e arte na pós-modernidade. As idéias construtivistas dizem respeito a noção de conhecimento não como uma coisa a ser apenas transmitida, mas como uma relação dialética entre o que conhece (sujeito) e o que é conhecido (objeto), instituído em um processo socio-histórico-cutural. Em relação as noções de desenvolvimento cognitivo, Piaget acreditava que a inteligência humana passa por estágios de desenvolvimento lineares, ascendentes e universais, esse pensamento já criticado desde os anos 70 passou a ser relativizado de acordo com o contexto cultural e encarado de forma complexa, e não mais como fases bem delimitadas. O conceito de conhecimento artístico também sofreu modificações, e passou a ser analisado como parte fundamental do conhecimento humano principalmente como uma forma de decodificarão e leitura de símbolos culturais, levando em conta tanto a produção das obras de arte como a compreensão dessas. A apreciação estética entendida como uma forma do desenvolvimento cognitivo, pode revela formas socialmente construídas de percepção do belo e a origem de certas referências culturais, que surgem a partir do questionamento e do dialogo sobre obras de arte ou imagens em geral. A pesquisa de Parsons apontada no texto de Hernández mostra cinco etapas diferentes de apreciação estética, que vão desde as percepções básicas da imagem (representação) até o cume do processo que seria a interpretação autônoma do indivíduo frente a imagem, essas etapas são: 1-favoritismo, 2- beleza e realismo, 3- expressão, 4- estilo e forma, 5- autonomia. Em meio as discussões sobre ensino de arte não poderia faltar as questões que envolvem o momento histórico em que vivemos, a contemporaneidade, também chamada de pós-modernidade. “ Tal como o formula Hargreaves, o pós-moderno pode ser considerado um fenômeno estético, cultural e intelectual que abarca um conjunto concreto de estilos, práticas e formas culturais nas artes plásticas, na literatura, na música, na arquitetura, na filosofia e no discurso intelectual em geral – pastiche, colagem, desconstrução, falta de linearidade, mescla de períodos e estilos, etc.” É muito importante se refletir sobre o conceito de pós-modernidade, pois isso influenciar todos os campos do saber gerando novos paradigmas no conhecimento. A arte passa a ser a representação de significados culturais e sociais , ganha assim um vasto campo para a livre interpretação, já que em um obra de arte não há mais verdades absolutas e tudo dependera do olhar que se lança sobre ela de acordo com o contexto em que se vive. Como ponto central desse capitulo cinco está a noção de interpretação como chave para a educação. ”Interpretar é, portanto, decifrar. Implica decompor um objeto (representação) em seu processo produtivo, descobrir sua coerência e dar aos elementos e às fases obtidas significados intencionais, sem perder nunca de vista a totalidade que se interpreta”. Entendida dessa forma a interpretação exige do indivíduo buscar em suas experiência pessoais significados que possam ser associados ao que ele esta vendo, essas associações colaboram para que o indivíduo complete o que ele já conhece com o novo conhecimento adquirido de acordo com suas necessidades e seu contexto socio-cultural, tornando-se um ser autônomo capaz de pensar e recriar seu próprio mundo, que me parece ser o grande objetivo da educação construtivista como um todo.

O capítulo seis intitulado A importância de aprender a interpretar a cultura visual, analisará o conceito de cultura visual como sendo um campo transdisciplinar, que envolve não só a materialidade dos objetos culturalmente produzidos, fotos, cartazes, vídeo, prédios, roupas, como também seu valor imaginativo e simbólico dentro dos variados contextos sociais. “O que foi dito até agora me leva a destacar que, atualmente, a cultura visual é importante não só como objeto de estudo, ou, partindo da proposta apresentada neste livro, como uma parte fundamental do que hoje se aborda na escola. É importante também em termos de economia, negócios, e de novas tecnologias, assim como receptores se possam beneficiar de seu estudo. Nesse sentido, além do prazer do consumo, um estudo sistemático da cultura visual pode proporcionar-nos uma compreensão crítica de seu papel e de suas funções sociais e das relações de poder às quais se vincula, além de sua mera apreciação ou do prazer que proporciona.” O autor esboça o objetivo de criar junto com o ensino da cultura visual uma espécie de “história dos olhares”, envolvendo nessa proposta a analise crítica das diversas formas de se olhar um objeto, formas essas que variam de acordo com o contexto histórico, cultural e social, e que portanto, servem de referência para entendermos como nosso próprio olhar se constitui e como isso interfere em nossas relações humanas. Para isso Hernández leva em conta todas as modificações atuais da sociedade globalizada em que vivemos, e destaca pontos como: “ A expansão, cada vez mais global, da informação e das fontes de conhecimento. As mudanças crescentes no mundo e nas formas de entende-lo. O contato crescente entre indivíduos, crenças e culturas devido às migrações. A relação mais forte e interativa entre pesquisa e desenvolvimento social devido a rapidez das comunicações.” Essas novas condições sociais exigem da escola novas posturas para com o conhecimento. Umas das importantes questões levantadas pelo autor nesse capítulo envolve a problemática de como transformar a arte uma ponte para a educação já que aparentemente ambas assumem posturas antagônicas? A arte é uma forma de representar o mundo e a educação uma forma de organizar conhecimentos de acordo com formas socialmente aceitas de representar o mundo. A questão, portanto, gire entorno de associar uma forma de criação livre com uma instituição de cunho normalizante. Dentro dessa nova proposta a arte assume papel de produtora de representações sociais, dessa forma sua importância já não se vincula apenas ao desenvolvimento da apreciação estética, mas também ao estudo histórico, sociológico e antropológico de determinados períodos, uma novo caminho para se interpretar o desenvolvimento das sociedades. Hernández da grande importância em suas propostas curriculares para a concepção de aprendizado como um processo que envolve a construção da subjetividade individual e a construção social do conhecimento, assim a educação se aproxima da idéia de arte ao ganhar nessa proposta não apenas uma função de transmitir certo conteúdo entendido como fundamental par a vivência social, mas também se torna uma produtora de conteúdos que partiram dos próprios educandos como seres ativos no processo de aprendizagem. Para tal empreendimento se destaca o dialogo como instrumento de troca de impressões e problematização da realidade, buscando sempre tornar o conteúdo a ser estudado algo atual e útil a vida cotidiana.

O autor Fernando Hernández desenvolve suas propostas educativas pensando em um contexto escolar. Procurarei associar essas idéias ao contexto da atividade de mediação, que também é um trabalho de cunho educacional, porém, fora do espaço escolar. O trabalho de um mediador apesar de ser voltado para obras de arte dentro de uma galeria vai além do mero ensino de arte, aproximando-se muito mais do que foi apontado por Hernández como cultura visual. No trabalho de mediação não vale apenas falar dos aspectos formais das obras de arte, nem se prender ao discurso convencional da história da arte que sempre destaca os grandes nomes e movimentos artísticos. Parece-me que o objetivo das mediações com escolas não é tornar os alunos artistas plásticos ou críticos de arte, e sim possibilitar a eles instrumentos de interpretação que os ajudem a trazer de dentro das obras de arte conhecimento útil para pensarem o mundo e suas próprias práticas sociais. Sempre levando em conta o fato, destacado por Hernández, de que os alunos já trazem consigo uma bagagem própria de conhecimentos e experiências que os possibilitam interpretar o mundo de acordo com seus contexto pessoal. Isso deve não só deve ser considerado como utilizado dentro das mediações como ponto inicial de um dialogo que se pretende construtor de novos significados a partir da (re)interpretação das obras da galeria. O dialogo e o questionamento permitem descobrir dos alunos suas opiniões e suas referencias simbólicas e culturais. Que por fim servem de ponte de contato entre a arte que lhes está sendo apresentada e o contexto socio-cultural dos alunos. Instigar o pensamento significa exigir dos alunos um posicionamento crítico em relação ao que estão vendo, dando a eles sua própria margem de interpretação e de participação na construção dos possíveis significados simbólicos da arte, isso é o que Paulo Freire chamava de desenvolver a curiosidade epistemológica, que gera criação de significado. Por tanto, em um contexto contemporâneo de um mundo globalizado onde as imagens se tornaram tão banais que os indivíduos são bombardeados por elas vinte a quatro horas por dia, assumindo quase sempre a postura passiva de meros receptores, o trabalho fundamental do mediador é sondar o contexto socio-cultural dos alunos e instiga-los a buscar problemas e respostas para o mundo em que vivem a partir das obras que estão conhecendo, é assim que a arte trona-se útil e atual para esses indivíduos, assumindo enfim uma utilidade indispensável a educação contemporânea. É assim que Fernando Hernández define cultora visual e o trabalho de mediação: “De nossa parte, a noção de cultura visual corresponde às mudanças nas noções de arte, cultura, imagem, história, educação, etc. produzidas nos últimos 15 anos e está vinculada à noção de mediação de representações, valores e identidades. A educação da cultura visual, assim apresentada, participa da tarefa que Debray atribuiu como objeto de estudo da Medialogia, ou seja, a disciplina que tem por tarefa explorar as vias e os meios da eficácia simbólica, centrado-se, portanto, no papel mediacional dos meios (os objetos artísticos serão alguns entre outros objetos e artefatos do universo visual).” Pensando dessa forma, a prática da mediação se vincula diretamente ao campo da cultura visual.





Anderson Magalhães.

Sobre o conceito da história/ A pintura histórica de Fromanger. Por Anderson Magalhães


Walter Benjamin inicia seu texto com uma imagem literária bastante surreal, que exemplifica sua crítica ao conceito vigente de história na primeira metade do século XX, essa imagem diz: “Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, coloca o numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre do xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche”. A crítica diz respeito a idéia de uma história entendida como um processo que contem em si mesmo um acumulo automático de fatos do passado, e que ao ser analisada através de causas e efeitos pode nos elucidar totalmente o presente e apontar o caminho para o futuro, contendo inclusive uma certa carga messiânica. Benjamin diz ser o materialismo histórico o fantoche de que fala. O materialismo histórico é um dos princípios da filosofia da história de Marx. Sendo um pensador da escola de Frankfurt, Benjamim não se afasta totalmente dos postulados marxistas, porém com seu olhar perspicaz acusa falhas na concepção histórica de sua época.

Interpretando a imagem literária construída por Benjamin podemos entender a mesa de xadrez ,que através de uma ilusão provocada por espelhos torna-se totalmente visível, como sendo o passado. É certo que o passado é o objeto primordial da história, mas ao contrario do que se pode pensar o passado nunca é dado simplesmente, ele é uma virtualidade percebida como fragmento, não se pode constituir o passado como uma fato a ser apropriado pelo historiador. O passado é sempre uma construção intelectual, social e cultural feita a partir das necessidades, anseios e problemas do presente. É isso que mostra Benjamin em seu texto ao dizer: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo colo ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” Assim sendo o passado avança sobre o presente de acordo com a necessidade, e essa é uma das principais funções da memória, tornar o passado sempre vivo e presente. A história total ou universal como pretendiam os marxistas vulgares é uma grande falácia, assim acusa Benjamin.

Seguindo em sua crítica Benjamin constrói mais uma bela imagem literária, dessa vez utilizando-se de um quadro de Klee chamado Angelus Novus. “Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve Ter esse aspecto. Seus rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruínas sobre ruínas e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”. E afinal o que é o progresso? O conceito de progresso esteve fortemente vinculado ao entendimento dos processos históricos, e vem desde os Iluministas, que acreditavam que a razão guiaria a humanidade sempre para o eterno progresso, ou seja, para a eterna melhoria dos seres humanos rumo ao futuro. Essa idéia sobreviveu em grande parte no marxismo, que interpretava os processos históricos de forma mecânica, dividido em fases seqüenciais e acumulativas que chegaria ao fim com o Estado comunista e o fim da luta de classes (praticamente o paraíso na terra).

Essa idéia de progresso não esteve somente ligada ao pensamento histórico, mas também ao pensamento cientificísta que se formou na modernidade, que acreditava no desenvolvimento das técnicas e do controle da natureza por essas técnicas. Benjamin crítica essa idéia dogmática de progresso e associa-a a formação dos estados tecnocráticos e fascistas da Europa: “Segundo a social democracia, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um progresso sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou espiral.” A tudo isso se chamava “marcha para o progresso”, e Benjamin em plena Europa na década de 40, percebendo o domínio dos regimes fascistas, que tinham como lema essa mesma idéia de marcha para o progresso, via uma contradição latente, um grande desenvolvimento técnico contraposto a um forte domínio ditatorial da sociedade.

Este progresso de que falava Benjamin traz consigo um conceito de história, que se desenvolve dentro de um tempo homogêneo e vazio, e torna o passado uma justificativa para o presente rumo ao futuro. Contra esse conceito de tempo histórico afirma Benjamin: “ A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.” Mais uma vez surge a noção de uma intrisica ligação entre presente e passado nas idéias históricas de Benjamin, assim sendo, se o presente muda, o olhar sobre o passado também deve mudar, isso faz com que o passado não seja apenas um fato congelado a espera de ser decifrado pelo historiador, mas sim um reflexo parcial e dinâmico do próprio presente.

Fromanger em sua pintura traz um intenso e rico diálogo com o campo da história, apropriando-se tanto de temas vindos da história oficial, que seriam os acontecimentos datados de maior importância na França, como por exemplo as passeatas de maio de 68. E também utiliza temas do que se pode chamar de história do cotidiano, onde ele retrata o aparentemente simplório movimento urbano nas ruas de Paris, mas que no fundo demonstra uma certa cultura contemporânea, com suas formações sociais e seus costumes. A própria idéia do movimento da Narração Figurativa é trazer por traz das figuras uma história sendo contada, e nessa narração pictórica é que surgem as críticas políticas e sociais, que Fromanger expões sem ser panfletário, evitando qualquer dogmatismo de esquerda ou direita, apresentando questionamentos sobre a realidade do ontem e do hoje, incitando o pensamento e a critica do observador.

Na série Homenagem à François Topino-Lebrun, Fromanger faz uma tripla sobreposição histórica utilizando a principio uma tela original de Topino-Lebrun e duas releituras suas, A morte de Caius Gracchus e A vida e a morte do povo, respectivamente abaixo: 


La Mort de Caius Gracchus, 1975-77


La vie et mort du peuple, 1975-77

Topino-Lebrun que foi um pintor do período da Revolução Francesa, em sua tela relembra um fato da história da Roma antiga, a morte do reformador romano Caius Gracchus. Pensando o conceito histórico de Benjamin podemos dizer que a pintura de Lebrun diz respeito não só a história do Império romano, mas também ao próprio período em que ele viveu. Sabe-se que os revolucionários franceses tomaram a Roma antiga como símbolo de sua luta, uma apropriação do passado pelo presente. E é isso que Fromanger mostra ao colocar em sua tela legendas que comparam os personagens da Roma antiga aos da época da Revolução Francesa. E além disso ele ainda traz esses mesmo personagens para a vida urbana cotidiana da Paris dos anos 70, essa comparações históricas são perceptíveis pelas legendas e pelas cores que se repetem nas duas telas. Será que além dos grandes personagens históricos com seus grandes feitos para a humanidade, como imperadores, reis, presidentes, não existem também personagens históricos comuns, pessoas diversas, médicos, professores, motoristas, que caminham cotidianamente pelas ruas das grandes metrópoles? Será que essas pessoas comuns não ajudam a construir a história e a sociedade em que vivem de forma tão importante ou mais do que esses grandes nomes destacados incansavelmente pêlos livros de história escolar? Os grandes movimentos históricos, políticos, culturais e sociais como foram a Revolução Francesa e os movimentos de maio de 68 não serão apenas o ápice de movimentos micro-sociais que surgiram na vida cotidiana dessas pessoas comuns que muitas vezes são simplesmente ignoradas pela história oficial? Parecem-me que são esses tipos de questionamentos que Fromanger levanta em suas pinturas, provocando uma reflexão crítica sobre o que entendemos como história e incitando a reinvenção dessa mesma noção.

Resenha crítica de: Walter Benjamim- Sociologia, ed. Ática. Capítulos 1- “Paris, capital do século XIX” e 2- “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” . Por Frederico Costa

Benjamin retrata a Paris do séc. XIX através de uma miríade de personalidades que dela escrevam ou que nela viveram e lá construíram importantes contribuições ao febril mundo industrial que ganhava corpo e que configura como base, muito de nossa vida atual.

Louis-Jacques-Mandé Daguerre é uma dessas personalidades por Benjamin escolhidas para falar da Paris capital do século. Daguerre aparece vinculado aos panoramas, tanto os de pintura, quanto os literários e fotográficos, uma vez que ele foi o primeiro a fixar uma imagem pela ação direta da luz. Diz Benjamin sobre isso à página 33:

“David aconselha seus discípulos a desenharem os panoramas segundo a natureza. À medida que os panoramas reproduzir na natureza representada alterações enganosamente similares, eles prenunciam, para além da fotografia, o cinema mudo e o cinema sonoro.

Contemporânea aos panoramas há uma literatura panoramática. (...) Eles se compõem de vários esboços, cujo revestimento anedótico corresponde às figuras plasticamente situadas no primeiro plano dos panoramas e cujo fundo informativo corresponde aos cenários pintados.”

Assim, Benjamin estabelece um liame estético entre a forma de arte plástica vigente na pintura com a literatura produzida no período e com uma das maiores invenções da época, a precursora da fotografia (daguerreotipia).

Uma personagem interessante é citada na página 34, sem maiores explicações, como parece ser a praxe de Benjamin: “A dianteira de Nadar em relação aos seus colegas de profissão caracteriza-se em seu projeto de fotografar o sistema de canalização de Paris.” (grifo meu). Em pesquisa, descubro que Félix Nadar foi, além disso, o primeiro homem a fazer fotografias aéreas. A bordo de um balão de ar, 1858, ele faz fotos aéreas em um sobrevôo por Paris. Dados muito interessantes a serem acrescentados em uma mediação pela série Bastilhas e Derivas de Fromanger. Fotografou diversas personalidades, incluindo Charles Baudelaire, do qual falaremos mais adiante através de sua figura, o flâneur.


Bastille-Treichville Bastille, 1988

Cita, ainda na pág. 34, Antoine Wiertz (pintor romântico belga), que em 1855 publica um artigo defendo que à fotografia caberia “iluminar filosoficamente a pintura”. E diz: “Wiertz pode ser considerado o primeiro que, se não a previu, ao menos postulou a montagem como uma utilização da fotografia para fins de agitação.” Muito pertinente em especial à série Álbum, Le Rouge.

Album Le Rouge, 1968-70


Contemporâneas a essas manifestações artísticas está o surgimento das galerias e passagens, lugares de compras dos finos artigos produzidos agora às carretas pelo processo industrial, a iluminação a gás das ruas- e interiores das galerias antes disso- e das exposições universais a anunciar novidades científicas e industriais. A flânerie é também de tudo isso contemporânea, e se dá em grande medida nestes espaços.

“O flâneur ainda está no limiar tanto da cidade grande quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas se sente em casa. Ele busca o seu asilo na multidão.(...) Na multidão, a cidade é ora paisagem, ora ninho acolhedor. A casa comercial constrói tanto um quanto outro, fazendo com que a flânerie se torne útil á venda de mercadorias. A casa comercial é a última grande molecagem do flâneur.” Pág. 39

A essa ambigüidade do flâneur ao caminhar pelos boulevares e galerias, entre as vitrines e lojas, flanando pelo consumismo, sem ser de todo a ele rendido, ao hábito burguês de bater pernas em shoppings, deixar-se levar sem um rumo definido... Não estamos diante de seus bisnetos ali na série Boulevard dos Italianos?

Série: Boulevard dos Italianos 1971

“A ambigüidade é a imagem aparente e visível da dialética, a lei da dialética em estado de paralisação. Essa paralisia é utópica e por isso a imagem dialética é uma quimera, a imagem de um sonho.” Para Benjamin, o novo é o objetivo do flâneur. Mas não só isso, pois o novo é também ”a quintessência da falsa consciência, cujo incansável agente é a moda. Essa falsa aparência de novidade se reflete, como um espelho em outro, na falsa aparência do sempre-igual, do eterno retorno do mesmo.(...) A arte, que começa a pôr em dúvida a sua tarefa e deixa de ser `inséparable d`utilité` (...) precisa fazer do novo o seu valor máximo” pág. 40.

Quebrar o vidro, com suas vitrines refletindo a cidade, sendo admiradas por silhuetas vermelhas. Que estão a fazer? Contemplando a moda da última coleção primavera-verão ou querendo quebrar o vidro, esperando com isso instaurar o novo? Sairiam do lugar com qualquer dessas ações ou estariam no fundo ainda tão inertes quanto no quadro aderindo a algumas das novidades incessantes anunciadas no design, nas estamparias ou quem sabe nos muros e palanques? Afinal, nem tão pouco da agenda sessentista foi assimilada pelo mainstream político. Alguém diria que estamos num lugar assim tão diferente?

Mas mesmo os vidros quebrados, em Paris, não constituem propriamente novidade. Nomeado prefeito de Paris por Napoleão III, Georges-Eugène Haussmann, de 1853 a 1870 conduziu a haussmannização da cidade, nome pelo qual ficou conhecida a grande reforma da cidade. Essa reforma foi concebida para abrigar o espetacular crescimento da cidade enquanto “capital do séc. XIX” tanto quanto para inviabilizar os levantes populares. Com as novas e largas avenidas supunha-se tornar impossível o levantamento de barricadas e dariam rápido acesso aos bairros operários, uma vez que estes foram expelidos do centro pelas reformas de Haussmann. Não só em maio de 68 temos a cidade tomada por barricadas como quase 100 anos antes disso, em 1871, temos a comuna de Paris.

Com a revolução industrial, pode-se agora ver o surgimento de metrópoles que eram raríssimas na história. Com as metrópoles, temos a multidão, e com a multidão, o anonimato. O flâneur, como um observador em meio à multidão, assemelha-se ao detetive. São ambos frutos dessa nova organização do espaço. O detetive é ainda tributário da fotografia, que torna possível a retenção do momento, um golpe ao anonimato. Temos na Série Negra um derivante que sai às ruas de máquina em punho, investigando os possíveis (prováveis, segundo as estatísticas que o motivaram) motivos escusos de uma grande parcela dos ali presentes, retidos em suas fotografias. Quando nas telas, vemos sublinhados os papéis no chão, bem como uma displicente e enigmática figura sentada num café marcada em vermelho.


Le Linceul n’a pas de poches, 2002-09


O texto não fala diretamente sobre a prática da mediação, mas no contexto específico da exposição de Gerard Fromanger podemos ver várias e úteis referências contextuais sobre subjacências à obra de Fromanger, do surgimento da fotografia e sua relação com a pintura, da constituição geográfico-política da cidade que tematiza. Da ligação entre a flânerie e as histórias de detetives, ou a personalidades como Nadar, que de uma forma peculiar, tem algo a ver com o trabalho do artista hoje. Particularidades históricas que convergem para sua obra em textos escritos antes mesmo de seu nascimento.





Frederico Costa



Resenha crítica do texto Para fazer e pensar uma educação Escolar em Arte. Capítulo 1 do livro Metodologia do Ensino de Arte. Por Frederico Costa

Maria Heloísa Ferraz e Maria Fusari tratam neste texto da prática do ensino de arte na educação infantil e no ensino fundamental, salientando a importância de que se clarifique o que é entendido por arte para tanto. Orientam ainda no sentido de que a arte esteja presente nas aulas de arte e que se cuide de dar uma formação estética consonante com as necessidades e práticas contemporâneas.

Neste sentido, o trabalho de mediação desenvolvido em galerias fornece uma oportunidade ímpar de por em prática um programa de tal tipo, posto que dispomos de material artístico in loco, podendo nos utilizar de produções originais para falar a respeito do fazer em arte, das correntes e concepções estéticas, mediando o diálogo dos estudantes com este universo que pode parecer, e frequentemente parece, distante do cotidiano, uma abstração difícil de conciliar com seus universos e interesses mais imediatos.

As autoras nos chamam a atenção para a centralidade da arte na experiência humana, em como estar no mundo significa estar numa conjuntura cultural que é anterior a todos nós, a qual forjamos e somos por ela forjados. O conjunto dos gostos, nas mais variadas expressões, sejam elas imagéticas, musicais, estilísticas, jogos ou cadências são formados na nossa interação com o ambiente sócio-cultural, em nosso contato com seus produtos de difusão, nas mais variadas mídias. Em nossa lida diária e incessante com essas formas concretas de manifestação cultural nos posicionamos esteticamente e vamos ganhando nosso próprio modo de avaliar e criar.

Quando expostas as obras de arte, são também expostas as visões particulares dos artistas, seu modo próprio de ver e criar/recriar o mundo. Apresentar isso ao público escolar é ampliar suas possibilidades de fazer o mesmo, e a mediação aumenta as possibilidades de leitura e apreensão dessas outras linguagens, dessas outras visões. Quando propomos uma dinâmica, facilitamos uma apropriação dessa nova linguagem, a tornamos mais próxima, se faz possível um relacionamento outro que o da simples contemplação, dizemos que aquilo é acessível e que também lhes é possível uma forma de expressão que talvez não lhes seja usual.

Outra das propostas das autoras é de que ao apresentar conteúdos artísticos o façamos de modo gradual, inserindo informações sobre a história da arte e sua articulação com outras influências culturais e de seu desenvolvimento conjunto com a história humana, nosso desenrolar político-cultural, e mesmo pessoal. Dar um panorama de inserções da arte para que possam perceber onde ela se faz presente e influente na sua própria trajetória, em sua constituição subjetiva. O que queremos conservar conosco e o que mudar, fazer da arte um instrumento pessoal, tendo em vista que para além disso, ela tem importância em si mesma.

A mediação é apontada como um trabalho fundamental dos professores, que devem ter em vista o desenvolvimento das capacidades cognitivas dos estudantes e adequar as matérias de ensino a elas, estabelecer uma unidade de objetivos entre o que se quer ensinar e o que eles querem aprender. Trabalhar para se chegar à um método eficaz de assimilação de conhecimentos. Por certo, o mesmo é válido para os mediadores em arte propriamente ditos, que idealmente devem contar com o apoio dos professores que tenham um conhecimento mais desenvolvido a respeito dessas questões da turma que orientam, de modo a tornar mais proveitoso o momento da mediação.

No entanto, temos ferramentas para uma aproximação com os estudantes que pode nos ajudar o orientar os caminhos que a mediação deve tomar, como procurar saber quais são suas referências estéticas, seus gostos e hábitos, ou questões técnicas, como cores ou momentos históricos. Algo que traga o objeto de estudo para um ambiente mais familiar, ajudando-os a traçar um paralelo entre o que se conhece e o que está sendo apresentado. Desmistificar a arte, como algo distante ou não-compreensível, é o que está por trás de ensinar arte, mediar a arte.





Frederico Costa

quinta-feira, 25 de março de 2010

Comentários sobre o livro “A mulher que matou os peixes” (Lispector, 1974). Por Diana Landim

Em A mulher que matou os peixes , Clarice tem uma história triste para contar: como ela, que tanto ama as crianças e os animais, matou os peixinhos. Para mostrar que a morte dos bichinhos ocorreu por descuido e não por falta de amor, ela narra vários episódios de sua vida ao lado dos animais. Tudo, situações verdadeiras – palavras da autora.
Como a história de Lisete, uma “miquinha” que usava roupas e brincos mulher, comprada por Clarice em uma feira. A bichinha foi levada para casa, entrou para a família, mas logo ficou doente e faleceu. Como lição para as crianças, fica a idéia de que não se deve comprar animais em feiras.

Ao pensar no nome dos animais/personagens do livro é possível perceber um traço recorrente no trabalho da escritora: a relação entre o nome dos animais e a intimidade que se tem com eles. Em “O crime do professor de matemática” (Laços de Família), Clarice relata que ao escolher um nome de gente para um animal está, na verdade, dando uma alma a ele. Jack, Bruno, Dilhermano são nomes com os quais foram batizaram os cães do livro.

No texto, podemos perceber traços da Clarice maternal que acha fácil escrever para crianças. A linguagem que utiliza está entre a fala de uma mãe que conta histórias para seu filho – explicando-lhe coisas do mundo – e fala própria de uma criança. O que demonstra a sensibilidade dela ao universo infantil.

“Morar numa ilha para sempre é triste, porque a gente não quer se separar da família e dos amigos. Mas não precisamos morar lá. Basta passar o sábado e o domingo” (Página 59).



É importante ressaltar como, ao longo do livro, são inseridas “lições de

vida” para as crianças. Assim, depois de contar que o “dedetizador” é o homem que mata baratas, que a antiga dona do seu cachorro batia em animais e que o perfume que ela usa foi inventado por alguém, Clarice conclui que existem pessoas que faze todo tipo de coisa. Tem gente que bate em cachorros, tem gente que não bate (Clarice). Tem que mata baratas e tem quem faça perfumes. Logo, as crianças entendem que existem muitas coisas diferentes para elas fazerem na vida. Não lhes faltam opções.

Assim como nas “Páginas Femininas”, a característica de formação de um futuro público acostumado com o estilo “clariceano” também está presente no livro infantil. Como por exemplo, o uso de antíteses - tão freqüente nos romances – pode ser percebido no episódio trágico no qual um cachorrinho, brigando com seu melhor amigo canino, fere-o mortalmente. Fato esse descrito por Clarice como uma história de “amor e ódio em um só coração” (palavras da autora).

Como nas revistas, Clarice bate-papo com as crianças, pedindo sempre sua opinião. Preocupa-se em deixar claro que não matou os peixinhos de propósito. Pergunta sempre aos leitores, se nós acreditamos nela, nos convida para fazermos um lanchinho em sua casa e finaliza o livro nos pedindo perdão pela morte dos peixinhos.



* Trecho destacado do livro (ao explicar os motivos pelos quais as baratas ficam tanto tempo sem aparecer em sua casa depois do trabalho de um dedetizador):



“Mas parece que uma barata, antes de morrer, conta baixo às outras baratas que minha casa é perigosa para raça delas e assim a notícia se espalha pelo mundo das baratas (...)”.

Comentários sobre o filme “De Corpo Inteiro” (ALGRATI, 2009), por Diana Landim

Dirigido por Nicole Algrati, sobrinha neta de Clarice Lispector, o filme “De corpo inteiro” (2009) é um misto de documentário e ficção. A partir de entrevistas realizadas pela escritora para o Jornal do Brasil e para revista Manchete – na coluna Diálogos Possíveis (entre 1968 e 1969) – posteriormente reunidas no livro “Entrevistas” (2003), – Algrati recria tanto os encontros de Clarice com personalidades da época (tendo atrizes como Letícia Spiller, Aracy Balabanian e Beth Goulart no papel de Clarice) como grava novas entrevistas com Tônia Carrero, Elke Maravilha, Ferreira Gullar.

Uma vez que as entrevistas realizadas por Clarice foram feitas em um período de tempo não muito longo, a escolha de várias atrizes para encenar seu papel não está relacionada a mudanças físicas do transcorrer dos anos. Mas sim, é uma escolha da direção que vê na troca de atrizes uma espécie de brincadeira de “ser Clarice” ao modo de cada atriz. Como se cada mulher, cada leitora de Clarice, que assistisse ao filme pudesse vê-la ao seu modo.

Para levar o público a compreender um pouco mais sobre o universo de Clarice e de seus entrevistados, um cuidadoso trabalho de direção de arte foi realizado. Assim, é possível perceber no filme traços de figurino e cenografia típicos dos anos 60 e 70, como também é possível aferirmos sobre a profissão e a personalidades dos entrevistados tendo como base o ambiente onde foram entrevistados. Como no caso da conversa com Carybé no Pelourinho (SSA) ou da entrevista com Maria Bononi em seu ateliê de gravura.

A trilha sonora merece um destaque especial. O filme tem como tema a música “Que Deus venha” – letra de Cazuza escrita a partir de trechos de “Água-Viva”. Interpretada por Adriana Calcanhoto especialmente para esse vídeo, a canção consegue traduzir com as próprias palavras de Clarice o tom intenso e sensível no qual vivia a escritora.





Sobre as entrevistas, Clarice consegue entrar na intimidade das personalidades de maneira natural. Talvez pela intimidade e admiração que a ligava a eles, talvez pela própria sensibilidade de escritora. Diferentemente das aspirações de “imparcialidade jornalística”, Clarice expõe abertamente sua opinião durante as entrevistas. Na realidade, assistir ao filme, mais que conhecer a opinião dos entrevistados sobre determinado tema, é conhecer a própria romancista. Em todas as conversas, ela parece buscar se entender. Indagando os outros é como se ela indagasse a si própria. Como fica claro na entrevista que ela faz ao amigo escritor e também psicanalista Hélio Pellegrino. Por ele a conhecer bem, ela o pergunta: “quem sou eu?”. Entre troca de elogios em um típico bate–papo de amigos, Clarice também pergunta a Pellegrio “o que é o amor” (pergunta recorrente em várias de suas entrevistas). E, ao falar de amor, escutamos de da escritora um raciocínio que poderia ser tirado das páginas de seus livros: Clarice queria viver várias vidas, para que em cada uma delas pudesse ser apenas uma coisa. Uma vida só para ser escritora, uma só para ser mãe. Uma vida para cada coisa, assim não teria que dividir o amor.

Ligando todas as entrevistas, temos a Clarice interpretada por Aracy Balabanian. Em montagem paralela, vemos a escritora já mais velha, pensativa, parecendo se lembrar de seu passado e esperar pelo o que estar por vir. Ao fundo, o off da entrevista que Clarice deu a TV Cultura meses antes de sua morte marca também com uma entrevista a despedida da escritora.

Resenha crítica dos capítulos 1 e 2 de "A Educação pela Arte", de Hebert Read. Por Rosângela Vieira

Essa é uma resenha crítica dos dois primeiros capítulos do livro de Hebert Read: A Educação pela Arte. Minha idéia de resenhar criticamente esse texto foi a de responder, ou tentar iniciar concretamente uma resposta a um impasse pessoal freqüente: Qual a importância real, visível, da visita das galerias do CCBB por parte de alunos e professores de escolas públicas do Distrito Federal? Uma resposta direta dessa pergunta contribuiria, melhor, definiria uma mediação de qualidade e causaria impacto na visão desses alunos quanto à importância da freqüência deles nesse ambiente. Até hoje, a escolha pessoal do curso de artes plásticas, a admiração pela história da arte faz da análise de sua importância algo íntimo para mim. Minha vivência e experiências, os valores e ideais de cultura e educação passados para mim por meus pais, valores esses que determinam a proximidade com pessoas de meu convívio, parece-me pessoal demais e quase intransferível. Seria então essa a questão? Como transferi-los? Não estaria eu tornando tais valores classe média brasiliense como ideais? Seria prepotência acreditar que minha crença da arte como elemento básico de cultura, e a cultura em si, no sentido de conhecimentos gerais(1) , é algo absoluto e relevante de fato para a educação e, portanto, crescimento, do país? Não apenas pelo conteúdo desse livro e de todos os mais de Arte que já li, também pela própria função que desenvolvo dentro das galerias de arte, pelo simples fato dessa galeria existir, percebo que a prepotência seria achar que tal pensamento sobre a importância do estudo da arte seria apenas de minha classe média brasiliense ou afins. Resenhando esse texto, venho direcioná-lo às respostas de meus próprios anseios, principalmente quando, durante minha visita, em frente aos "meus" alunos, tento instigá-los quanto à importância da visita deles perguntando: Por que uma instituição financeira como o Banco do Brasil disponibiliza uma galeria de arte para visitação pública? E oferece serviço de mediação? Por que sua escola agendou essa visita? Como essa visita pode funcionar como elemento aglutinante de vários outros conhecimentos culturais que tenham, análise do cotidiano, das imagens da cultura visual e mesmo de outras visitas ao próprio CCBB e outras galerias de arte?


(1)Quando falamos "cultura" referimo-nos, basicamente, a dois pensamentos comuns: o primeiro que a trata como manifestação social de determinado local, região, ano, pensamento. A segunda maneira vem como abrangência de conhecimentos, algo valorizado socialmente, admirado e até como objeto de desejo, como dizer que alguém é culto, ou que tem muita "cultura". Não se pode, entretanto, ser deixado de lado o caráter cultural em que todos, sem exceções estão incluídos e são, inclusive, formadores dele. Por isso imaginar que qualquer aluno, dos mais carentes ao mais afortunados, tanto financeiramente quanto cognitivamente, seja excluído culturalmente, trata-se do segundo pensamento quanto à "cultura". Creio que analisar e criticar a ambigüidade dessa palavra e como os alunos percebem-se no uso dela, também é ferramenta disponível, porém pouco utilizada durante nossas mediações.


Espero desse livro, pelo próprio título dele, que me venha responder objetivamente como o uso da arte, sua história e imagens, bem como técnicas e artistas deve não apenas auxiliar ou ser parte de uma educação de qualidade, mas ser a base dela. Se o autor responder à isso, saciará, enfim, a importância do uso das galerias de arte feito pelas escolas.





Para isso, o livro de Hebert Read parte de uma tese original de Platão, quando esse afirma justamente que a arte deve ser a base da educação. A intenção do livro é, portanto, reler e reconsiderar tal teoria e levantar formas "diretamente aplicáveis às nossas atuais necessidades e condições" de estudo dentro das escolas e outros ambientes educacionais. Para isso, o autor necessita apontar o entendimento por Educação e por Arte para viabilidade da tese. O discorrer do argumento do autor parte de duas premissas muito interessantes que ele define como hipóteses da função da educação: 1) a educação tem como função tornar o homem o que ele é; 2) tornar o homem o que ele não é (Paulo Freire). Isto é, identificar e desenvolver as potencialidades "boas" de um indivíduo, a segunda, identificar e erradicar as potencialidades "ruins" do mesmo. A partir disso, um pensamento do que seria, afinal, bom ou mau, é levado em consideração. A bondade e a maldade consideradas como algo natural é baseado, pelo autor, na "hipótese mais ampla na criação evolutiva". Dentro disso, considera-se que no mundo animal, o bem e o mal não existem, e é, portanto a noção de bondade que impera num estado natural de inocência. O ser humano, que se tornou dotado de autoconsciência e consciência de suas relações com outros seres humanos autoconscientes, desenvolveu faculdades intuitivas às quais damos o nome de "qualidades morais". Pessoalmente, percebo esse termo que ele usa como "faculdades intuitivas" como "(in)consciente coletivo". Nesse trecho do livro, o relacionar do desenvolvimento desse termo com "Cultura", ainda não é especificado, já que a amplitude é intenção dessa introdução. Desse ponto de vista, as características morais determinadas como bem e mal não são biológicas. O bem é tido aqui como tendências que respondem pela unidade orgânica das associações humanas e, mal, tendências que destroem essa unidade.

Outra hipótese trazida para delimitar esse pensamento seria uma mais antiga que a da criação, a que dita o homem como natural e invariavelmente mau, base do pensamento cristão, que posiciona Deus como esperança única de bondade ou beatitude. O que concebe a Educação como disciplina moral- religiosa. O autor adota, como base para definição primeira de educação, a neutralidade entre as concepções de bondade ou maldade, definindo que o Estado Democrático deve visar por um ideal educacional que descarte a uniformidade, que preze o individualismo, a variedade e a diferenciação orgânica. Surge um dilema quanto aos aspectos sociológicos do papel e responsabilidades do educador. A resposta para esse dilema é apresentada junto à definição utilizada pelo autor de Educação, definição essa necessária para o discorrer sobre a tese de Platão: A Arte deve ser a base da Educação. E logo após essa primeira definição, a que se segue será, o que é arte.

Definir o que é arte e porque é arte já foi (e continua sendo) tentado por muitos, mas a problemática dessa definição aqui parte mais de um levantamento sobre como Platão tratava a Arte. Para estudantes desse ramo e os estudantes de história e filosofia(2) , por exemplo, um primeiro pensamento sobre a relação de Platão com arte seria que esse a veria num nível inferior às nossas percepções comuns, como uma imitação da imitação. Isso porque a idéia seria o original de todas as coisas, o mundo que vemos é apenas a sombra das idéias. A arte seria uma reprodução de terceiro grau: a verdade é o mundo das idéias, o objeto é fruto dessas idéias, portanto uma reprodução desse produto seria a arte, então, a 3ª reprodução. A partir desse momento, a definição de educação e arte para o autor será base do desenvolver da tese em questão.

To be continued...



(2)Aqui tive a prezada colaboração de meus colegas Ricardo e Anderson, discutimos juntos por alguns momentos que se prolongaram além da galeria para os minutos de estudo a peculiaridade do uso dessa tese, já que Platão é visto como um "não simpatizante", em primeira instância, das artes, ao menos das plásticas ou visuais.





Curiosidades



Pontos levantados em algumas discussões com Ricardo e Anderson (ambos mediadores da exposição Gerard Fromanger – A imaginação no poder, o primeiro, estudante de Filosofia pela UnB, o segundo, de História):



Nietzsche : denominação da verdade é criada culturalmente, socialmente, historicamente.

Platão: visão do Platão sobre arte. Um nível inferior às nossas percepções comuns, imitação da imitação. O Mito da caverna: tecnologia e seus meios podem ser relacionados com quase que um culto à caverna, o registro para posterioridade. A arte com meio de alcançar uma realidade ideal.

terça-feira, 23 de março de 2010

Sobre o rosto, a paisagem, a fotografia e o urbano na obra de Gerárd Fromanger


Resenha do texto RETRATOS O rosto e a paisagem.
Em Paisagens Urbanas de Nelson Brissac Peixoto.

Por Arlene von-Sohsten

O texto resenhado levanta pontos passiveis de discussão dentro do trabalho do frances Gérard Fromanger
[1], referência da Nova Figuração. Assim, o presente texto tentará articular os questionamentos trazidos por Nelson Brissac, acerca do rosto, da paisagem, do urbano e da fotografia, com o trabalho desenvolvido por Fromanger desde a década de 60. Nessa articulação é pensado ainda o trabalho educativo exercido dentro das galerias de arte pelos mediadores.

Brissac traz muito sucintamente uma trajetória do rosto e da paisagem dentro da história da imagem. A partir do apontamento de teóricos como Baudelaire, Benjamin, Atget, Barthes, dentre outros, é feito um questionamento acerca do lugar que o rosto e a paisagem ocupam hoje. Novos diálogos são propostos. É inevitável! A contemporaneidade traz novas relações entre rosto e paisagem.

A pintura na modernidade abandonou a representação do divino indo ao encontro de uma representação de paisagens e de retrato. Mas a busca pelo sagrado não foi abandonada. A pintura que se fez desde então tentaria entrever o sagrado justamente nestas figuras primárias – o rosto e paisagem. (BRISSAC 2004, p. 57). Com o passar do tempo o lugar do rosto e da paisagem e o tratamento dado aos dois, foi sendo modificado. Qual seria hoje o lugar deles? Podem as imagens atuais nos trazer rostos e paisagens? Estaria a imagem do rosto banalizada na era contemporânea?

No cinema paisagem e rosto podem ser vistos através do plano geral e do close, respectivamente. Este último é uma técnica que se aproxima do referente rosto-paisagem. Um close na face humana é um rosto isolado no tempo e no espaço. O close é um momento de suspensão espaço-temporal, através do qual o espectador se deixa ser levado e trazido de volta. Nele o rosto é destacado e se torna imenso, todo o foco está nele, não há mais nada para olhar, só o imenso rosto decupado pela proximidade da câmera, só os poros da pele, pois a distância mínima de conforto foi quebrada.

É importante destacar que o close não é colocado no texto como mera aproximação. Essa relação de proximidade é, em alguma instância, semelhante ao trabalho desenvolvido dentro das galerias de arte. A mediação aproxima o visitante da obra, e não se trata de uma aproximação indiscriminada. Apropriando-me conotativamente do conceito de close colocado no texto penso que a mediação permite ao visitante dar um close na imagem, no sentido de aprofundar-se na leitura, tanto no seu plano de expressão, quanto no plano de conteúdo.
[2] Abandonando assim a superficialidade e entrando nos pormenores da imagem, seja ela uma obra de arte ou não. Dessa forma, o visitante pode ter tanto o plano geral (uma vista panorâmica) como o close (aprofundamento), processo – de aproximação e de distanciamento da imagem - necessário à educação visual.

Brissac traz uma posição benjaminiana traçando um paralelo entre pessoa e urbano, mais especificamente entre fisionomia e cidade. O autor usa o termo fisionomias urbanas para mostrar essa relação entre a silhueta das cidades e o perfil de seus moradores, algo que está intrinsecamente relacionado. Tal conceito pode ser claramente encontrado no trabalho de Fromanger que através das suas linhas interliga pessoas, cidades e mapas, as linhas que formam o corpo humano se confundem com as linhas que formam o corpo da cidade, tramando uma malha urbana-humana. Com Formanger, Bastilhas e pessoas se fundem em derivas, na série Bastilhas e Derivas, na qual vemos o bairro da Bastilha em Paris através do olhar do artista. Esse olhar é intermediado pela fotografia, ou melhor, pela visão de um fotógrafo, amigo do artista, quando eles saem às ruas registrando o cotidiano parisiense.



Bastilles-dérives, jaune cadmium moyen, 2008
Bastilhas, Derivas, amarelo cádmio médio
Acrílica sobre tela, 130 x 97 cm. Série Bastilhas & Derivas

Segundo Brissac a partir do século XIX vemos pinturas de pessoas e paisagens que tem por suporte a fotografia. É o caso do já mencionado Gerard Fromanger e do pintor alemão Gerhard Richter

O trabalho de Richter citado no texto inevitavelmente me remete aos trabalhos de Fromanger. Ambos em um processo de criação que parte do registro da imagem por uma máquina. Intencionalmente abdicam da identidade, personalidade, caráter da pessoa representada – tais aspectos não são relevantes – a fotografia supre, enquanto suporte, a demanda dentro do objetivo do pintor. Formanger esvazia o que há de pessoal nos indivíduos através de suas silhuetas chapadas. Não vemos rosto, apenas contornos, o que podia ser particular é universal. É por meio da fotografia, que Richter e Fromanger constroem suas narrativas.

Há uma peculiaridade em se trabalhar com fotografia. Algo que segundo o autor nenhum quadro pode nos mostrar: Um relance da realidade imediata. Só a fotografia possuiria essa capacidade intrínseca, de captar um aqui e agora que nem o fotógrafo planejava captar – o algo imprevisto. Mas há uma questão: partindo a pintura da fotografia, seria ela (a pintura) por conseqüência dotada dessa peculiaridade inerente ao ato fotográfico, esse efêmero imprevisto registrado involuntariamente pelo fotógrafo?

Ou ainda. Seria a pintura dotada de profundidade e a fotografia fadada à superficialidade? Baudelaire e Benjamin compartilham da mesma idéia ao afirmar a pintura vai em busca de algo que reside na profundidade da imagem, o que não nos é dado num primeiro momento, enquanto a fotografia não tem espessura, e por ser rasa ela nos mostraria tudo. Será que essa idéia também se aplicaria a uma pintura que tem como suporte a linguagem fotográfica? Se a fotografia é rasa por nos mostrar tudo então a profundidade na pintura de Fromanger, por exemplo, estaria na ausência, no que ela esconde. Exatamente por não nos revelar tudo, suas imagens abrem espaço para possibilidades de discurso. Enfim, nessa relação fotografia-pintura vale pensar em como se dá tais questões no trabalho de artistas como Fromanger ou Richter.

Ainda sobre fotografia Nelson Brissac questiona, a partir do trabalho de Cássio Vasconcellos, o fato da carga simbólica ser tradicionalmente atribuída apenas às fotografias antigas. Vasconcellos busca a transcendência, a luz, o estado de êxtase exatamente nas imagens contemporâneas banais, atribuindo-lhe carga signica que em seu contexto original não tinha. O processo no trabalho do artista consiste basicamente em fotografar imagens de filmes comuns. Dessa forma ele isola a imagem do seu contexto original dando-lhe nova carga simbólica e afetiva. Ele pega, por exemplo, imagens de filmes pornôs, nas quais a mulher parece estar em transe, e fotografa seu rosto, mas esse rosto, quando dissociado de seu contexto, diz respeito a um estado de êxtase qualquer e não apenas erótico. Ao deslocar a imagem Vasconcellos esvazia-a de significado para enchê-la novamente, dessa forma, olhando tais imagens não conseguimos definir qual é o êxtase possivelmente religioso ou erótico. Assim, sagrado e profano se misturam e se confundem.

Com o trabalho de Richter, Fromanger ou Vasconcellos percebe-se o quanto as fronteiras entre as linguagens (pintura, fotografia, cinema, dentre outras) foram e continuam sendo dissolvidas. Os questionamentos acima colocados, acerca do lugar e das peculiaridades de cada linguagem, são mais no sentido de provocar o questionamento do que de obter respostas.

Dentro dessa necessidade de definir conceitos e estabelecer limites é importante pensar no como se constrói um discurso acerca de tais linguagens na contemporaneidade. Digo isso pensando exclusivamente nos diálogos propostos nas galerias de arte: como as pessoas observam uma pintura que partiu da fotografia? Posso afirmar, a partir da minha experiência como mediadora, que parte dos observadores/fruidores desqualifica a obra ao saber que o artista utilizou a fotografia e não “tirou aquilo da cabeça dele”, reforçando a idéia de artista como gênio criador.

Por isso é necessário pensar em propostas de diálogos que abram para discursos possíveis, e essa necessidade é preocupação da nossa equipe de mediadores que trabalham com a educação visual.

REFERÊNCIA:
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. 3. ed. São Paulo: Editora SENAC, 2004.

[1] Artista que expôs no Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília de 8 de setembro a 15 de novembro de 2009.[2] Os termos plano de conteúdo e plano de expressão foram criados pelo semioticista dinamarquês Louis Hjelmslev para substituir respectivamente os tradicionais termos significado e significante atribuídos por Ferdinand de Saussure, lingüista e filósofo suíço que desenvolveu muitas das teorias lingüísticas discutidas no séc. xx. Dessa forma, a significação do texto se dá na relação dos planos de expressão e de conteúdo, seja um texto verbal, sonoro, visual, cênico...

segunda-feira, 22 de março de 2010

O que vemos? Como vemos? Considerações acerca da visualidade contemporânea. Uma breve reflexão sobre o ensino das artes visuais.

Resenha do primeiro capítulo do livro Catadores da Cultura Visual.
Do autor Fernando Hernández professor da Universidade de Barcelona.

Por Arlene von-Sohsten


No texto supracitado Hernández propõe uma reflexão acerca dos Estudos da Cultura Visual e expõe motivos para se propor uma mudança na maneira que a arte visual é “ensinada” na educação formal. Critica ainda o planejamento e a elaboração dos currículos escolares, considerando-os discrepantes quando relacionados à realidade das crianças, dos jovens.

Os alunos, fora da escola, estão em contato com os diversos meios de comunicação, com uma variedade riquíssima de imagens, com novas e atraentes tecnologias, enfim, com tudo o que a sociedade contemporânea globalizada pode oferecer-lhe. Dessa forma, é necessário pensar como a educação formal está se posicionando frente a essa realidade, pois, com tantas mudanças (nas relações sociais, nas formas de representação, no tratamento da imagem, na forma de ver e perceber o mundo) é inviável que o planejamento curricular, a instituição escolar ou mesmo os docentes continuem como estão.

Essa proposta de mudança vai ao encontro de “uma narrativa que considera que o pedagógico é também uma prática política e que não se reduz ao processo de ensino-aprendizagem.” (HERNÁNDEZ, 2007, p.38). Pressupõem-se assim uma prática educacional fundamentada nas relações sociais, na vivência, na interdisciplinaridade, na reflexão crítica, na autonomia.

Em termos de comunicação o autor trata com a mesma importância as diversas linguagens: a palavra (escrita ou falada), o som e a imagem. Mas se não há uma preocupação em instrumentalizar a criança ou o jovem durante a educação formal, ensinando sobre a linguagem do som e das imagens, como é possível exigir que eles se posicionem criticamente a respeito de um filme, de uma música, ou de uma propaganda qualquer? A imagem é potencialmente assimilável e associável, mas tanto a assimilação quanto a significação estará limitadamente condicionada à capacidade do indivíduo de estabelecer relações e analisar criticamente.

O termo Cultura Visual surge de uma necessidade de mudança impulsionada pelas práticas culturais relacionadas ao olhar: como vemos, percebemos e nos relacionamos com o mundo imagético do nosso cotidiano? Hernández ao usar o termo refere-se “às maneiras subjetivas e intra-subjetivas de ver o mundo e a si mesmo.” (2007, p.22), incluindo assim as práticas culturais e sociais do olhar.

Hernandez, com o termo Estudos de Cultura Visual, sugere um novo rumo para a educação das artes visuais. Pergunto-me, no entanto, se as outras linguagens e manifestações artísticas, como a arte cênica, por exemplo, estão sendo consideradas dentro dessa ‘nova’ terminologia. É claro que estando um individuo instrumentalizado para desenvolver sua criticidade visual, estará instrumentalizado conseqüentemente para ler um espetáculo teatral de forma crítica. Afinal, o teatro faz parte dessa cultura visual. Mas a questão é: O Estudo da Cultura Visual é um novo rumo para a educação das Artes Visuais ou é um novo rumo para a educação da e na arte? Talvez ao utilizar o termo artes visuais o autor tenha compreendido não apenas o trabalho de artistas plásticos, mas também o teatro, a performance, o cinema, etc. Por isso, é importante refletir, neste contexto: o que é arte visual e o que ela engloba? Enfim, são inquietações acerca do papel das diversas linguagens artísticas dentro da visualidade contemporânea.

Talvez essa nova proposta educacional, que engloba o aspecto subjetivo e as práticas sócio-culturais da contemporaneidade, esteja no caminho mais próximo de uma interdisciplinaridade entre as artes, mais especificamente entre a convencionalmente chamada arte visual e as artes cênicas, pois ela esta preocupada fundamentalmente com a educação do olhar.

A educação da cultura visual é amplamente crítica, é formadora de seres pensantes capazes de se posicionar com autonomia frente a qualquer imagem, seja ela visual, verbal, sonora, etc. E falo aqui de uma capacidade crítica não apenas na leitura, mas também na produção de imagens. Esse “alfabetismo visual crítico” torna-se imprescindível na atual saturação de imagens onde estamos imersos. Na internet, por exemplo, há uma infinidade de coisas para se ver-ler, o filtro é o nosso interesse, e, nesse contexto, o interesse é condicionado pela educação visual.

O trabalho realizado pelo programa educativo dentro de museus e galerias de arte vai ao encontro dessa educação visual. A principal preocupação dos mediadores de arte é instrumentalizar o visitante para que ele possa fazer suas próprias associações, atribuir significados, emitir opiniões, tudo baseado numa autonomia construída através do diálogo entre o observador (participante)[1], obra de arte e mediador.

Na busca dessa educação visual o mediador se depara, no contato com o visitante, com vários conceitos pré-formulados, isso para não dizer barreiras enormes: a função do mediador ainda mal compreendida e desconhecida por muitos; a busca por um significado único (no caso o do artista), o que nega primeiramente a própria autonomia do indivíduo; a idéia de obra de arte como algo inatingível, quase sagrado, ou o extremo oposto, a arte como algo supérfluo, sem valor; a passividade frente às imagens. Isso para citar apenas algumas das dificuldades que o mediador precisa trabalhar, e que poderiam ser atenuadas se houvesse, na educação formal, a mesma preocupação.

Um aspecto relevante dentro da mediação é considerar o contexto sócio-cultural dos alunos-visitantes, inserindo elementos do cotidiano desse público no diálogo. A educação na e da arte precisa se aproximar do lugar onde os estudantes estão, onde eles formam suas relações, suas opiniões, sua subjetividade. Se a educação formal aproximasse o conteúdo do cotidiano dos estudantes a aprendizagem se tornaria algo prazeroso. No ensino das artes poderia utilizar a produção local como o grafite e o hip hop, por exemplo, que dependendo do contexto é a manifestação artística mais próxima dos alunos.

A partir das reflexões propostas cabe sugerir uma aproximação entre educação formal e práticas educativas extracurriculares, no sentido daquela se espelhar nesta. Em especial o já citado trabalho de mediação que apesar de incipiente tem mostrado resultados satisfatórios.


REFERÊNCIA:
HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da Cultura Visual. Proposta para uma nova narrativa educacional. Porto Alegre: Mediação, 2007.

[1] O termo participante é empregado por Hélio Oiticica para definir uma espécie de observador sensível, que é ativo na criação da obra. A atual utilização do termo é inspirada na obra Parangolés do mesmo artista.